Postado em 13/06/2017
Solange Amado
Solange Amado
A moça tinha um segredo. Tinha algo escondido dentro de si
que não ousava mostrar para o mundo. Algo insuspeitado. Nasceu com essa coisa
esquisita. Não era atoa que tinha fama de ET. Gostava de se amoitar por horas
debaixo da mesa, no fundo do quintal, em qualquer lugar onde seu corpinho magro
coubesse e a solidão habitasse.
E se enfiava aí, não porque não gostasse dos outros humanos
que faziam parte do seu mundo. Ao contrário do que podem imaginar, a moça era
tagarela e até frequentemente, por não conseguir fechar o bico, dava bom dia a
cavalo. O chinelo esquentava o lombo. Doía. Mas doía mais não poder
compartilhar o seu segredo. Aí não tinha jeito, tinha de bater em retirada e
curtir esse prazer solitário. Cujo, não tem nada a ver com o que apregoam as
más línguas. Esse prazer em particular não precisa necessariamente de ficar nas
sombras. É até bastante apreciado. Mas a moça não sabia disso.
Não era nada cômodo sentir na boca do estomago borboletas em
alegre revoada, um Noturno de Chopin, um pipilar de passarinhos. Um sentir meio
fora dos esquadros. A roça com toda a sua singeleza surgindo da poluição de uma
poeira pegajosa do asfalto.
Era precisamente no meio dessa loucura asfáltica que a
menina-moça sentia surgir dentro de si o seu segredo, feito de canções, poemas,
delicadezas, revoadas de pássaros e borboletas, que ela ainda não sabia poder
existir debaixo da poeira pesada do dia-a-dia. O mal estar daquele segredo
consumia a pobre moça picada pela mosca da escrita-canção que lhe produzia uma
febre intermitente de palavras e que a fazia se isolar. Tentava escutar,
entender de onde vinham esses arrepios, pios de pássaros que habitavam o lado
de dentro do seu mundo. Imundo lá fora. Um contraste aparentemente impossível.
Muitos anos de passaram até a moça se habituar com seu lado
ET, e não precisar mais se esconder sob a mesa. Hoje ela serve seu cardápio de
palavras com pimenta, cravo, canela para estômagos fortes ou ocasionalmente, um
arranjo light para criaturas que só digerem levezas. Não importa. Só depende se
a revoada de pássaros e borboletas dentro de si, for acompanhada de uma trilha
sonora bandeando para o lado de um flutuante “Au Clair de La Lune” ou da “Abertura
1812” estremecendo as paredes do seu cérebro.
A moça ainda foge para esconderijos inconfessados quando
sente uma revoada de borboletas batendo desorientada as paredes da cachola. Mas
não é mais esquisita. Hoje espalha no papel uma revoada de palavras.
Escrevinha. E poemeia.
E se todo escritor, todo poeta vive no fio da navalha da
normalidade. A moça recebeu indulgência plenária para a sua esquisitice. Não é
à prova de balas. São as palavras que a fazem dar de cara no tatame. São as
palavras que a fazem se reinventar todos os dias.
De qualquer maneira, a moça não chega a ser torta como Carlos
Drumond de Andrade ou Manoel de Barros. É só um pouco empenada. Porque palavras
têm um peso. Carregar dói. Mas a moça carrega. Pra onde, ela não sabe. Por que,
ela não sabe. E qual sementes, as palavras às vezes lhe escapam pelo caminho,
sem garantia de brotar.
Enquanto procura respostas, ela vai caminhando, grávida de
uma esperança atroz de chegar. Sempre na beirada de si mesma. Que escrever é
isso.
Maria Solange Amado Ladeira - 13/06/2017
www.versiprosear.blogspot.com.br
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