Um dia infernal
Solange Amado
Naquela
sexta-feira, o sol nasceu grande, gordo, intenso, e envolveu a terra num abraço
de tamanduá, cheio de tesão.
A moça saiu de casa suando em bicas para o seu almoço diário.
Na sua esquina, o asfalto fervia mais do que o pobre cérebro da moça, já quente
de tanta notícia ruim. Fácil verificar que havia algo de podre no reino da
Dinamarca. Suas narinas lhe contavam que tanto mormaço não prometia nada de
bom. O mormaço ou seus instintos. Mas é bom acreditar que no fim, o bem vencerá.
Tempos melhores virão. A moça acreditava na humanidade e no jogo do contente.
Polyana menina que era.
Foi então que a casa caiu. Entrou no restaurante com o pé
direito, por via das dúvidas. Escolheu uma mesa discreta e se serviu. Foi aí
que o homem entrou. Bem vestido, com uma pasta na mão. O protótipo do executivo
bem sucedido. Pediu uns trocados. A moça
o olhou surpresa. O garçom pediu que ele se retirasse. Não era permitido pedir
esmolas ali dentro. O homem fez ouvidos moucos. Tentaram tirá-lo à força. E aí
o caldo azedou de vez.
Com o dedo em riste na cara da moça, o homem lhe prometia as
penas do inferno. Ela estava pensando que era melhor do que ele? Não era.
Aliás, ela podia morrer a qualquer momento e aí, ia amargar as penas do
inferno. Debaixo da terra todo mundo é igual. Os bichos comem do mesmo jeito. A
madame estava comendo sua comidinha de rica, enquanto ele morria de fome. A
vida é injusta. Mas no inferno ela ia pagar. Blá blá blá.
E os gritos aumentavam enquanto o cidadão era carregado pra
fora. A moça perdeu o apetite. Entrou muda e saiu calada. “L’enfer sont les
autres”. Fazer o quê? Ameaçada com as penas do inferno, parou na banca de
revistas. Talvez comprasse a revista “Caras”. Gente bonita, fama, sucesso,
fotoshop e muito caô. Obturar o mal estar. É disso que precisava.
Mas sempre pode piorar. A mulher se aproximou de mansinho.
Pediu uma esmola. Assustada, a moça se afastou calada. Em vão. A mulher a
seguiu soltando fogo pelas ventas. Dedo em riste: “Tá pensando que vai sair
dessa? O ônibus vai passar por cima dos seus miolos, espalhar eles na rua. E
você vai direto pras mãos do diabo. Sua alma podre vai queimar no fogo do
inferno”.
A alma podre gozou uns 3 minutos de fama. Todo mundo em volta
olhava curioso, farejando um barraco de comadres. E a moça seguia, cabeça
erguida, tipo “os cães latem e a caravana passa”.
Acontece quer a caravana se lembrou que tinha uma sessão
pilates. Resolveu que não ia vencer 4 quarteirões a pé. Perigava outro encontro
festivo. Resolveu ir de ônibus.
Decisão errada. Nem 5 minutos de espera quando se aproxima um
sujeito de terno e mochila. Queria vender uma bíblia. Um tijolaço com fecho
éclair. A moça agradeceu polidamente. O cara insistiu. A moça recusou. Nova
investida. Nova recusa. Aí. Adivinhem? O sujeito apelou, dedão na cara da moça:
“Você pensa? Pode morrer ali na esquina (dedão apontando pra esquina). E vai
pra lá (dedão apontando pra baixo) Lá é o inferno onde sua alma vai queimar. A
salvação está aqui (dedão apontando pro
calhamaço bíblico)”. Essa lereia durou até o ônibus chegar. A moça
entrou rapidamente pra fugir das labaredas de satanás.
Em poucos minutos, o ônibus chegou ao seu destino: sala de
pilates. Ar condicionado agradável. Os instrumentos de tortura enfileirados.
Tudo normal. Nada de capetas ou fogueiras demoníacas.
Foi quando ela olhou para o canto e viu a balança. O capeta
tentou e ela subiu. O ponteiro deu uma volta completa e parou. Seu coração
também. Dois quilos a mais! Então, ela compreendeu: Não havia dúvida. Esse era o
inferno.
Maria Solange Amado Ladeira
- 02/04/2017
www.versiprosear.blogspot.com.br
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