Originalidades


Postado em 28/03/2017
Originalidades
Solange Amado

A moça quer escrever. Sobre o que? Ela não tem culpa. Ultimamente não tem acontecido nada. Quer dizer, nada novo. O universo é meio biruta, mas não é nada original. A gente acaba se acostumando às mesmas birutices, e o cérebro se acomoda. Como um quadro de avisos. Se as mensagens não são renovadas, o cérebro não registra mais nada do que ali está. Congela.
É isso, a moça precisa escrever algo razoavelmente original, mas o cérebro congelou na mesmice. O mundo é um quadro de avisos. O encarregado não muda a papelada. Não obstante, a moça tem de tirar leite de pedra. Toda semana. Uma peleja! Tem de desovar algumas linhas fora dos esquadros do lugar comum. E, vamos e venhamos, isso não é justo.
Tem vasilha suja na pia. Tem roupa pra botar na máquina. Tem o supermercado esperando a sua visita. Tem de fazer unha, depilação e sombrancelha. Que ela saiba, Shakespeare não fazia depilação, Machado de Assis nunca lavou vasilhas e Marguerite Duras se lixava pra sombrancelhas e unhas. Sem falar nas outras vacas sagradas da literatura. Nenhum deles via BBB na televisão, tinha um celular no bolso, respondia aos zap zap. Vai daí, arrebentaram com as palavras. A moça já começa no prejuízo. Mas vocês sabem, a má fé remove montanhas.
Mas se pensam que ela vai desistir, ledo engano. Ela abre a gaveta do armário. Não tem um colt com cabo de madrepérola. No máximo tem uma dupla sertaneja com aquelas letras maravilhosas; na maioria vogais: Ô Ô Ô,  UI UI UI,  AÔ AÔ AÔ! Meio desesperador. Mas procurando bem, a moça acha algumas consoantes bem aproveitáveis.
Com elas, inicia o seu percurso, seu grande sertão. Não tão grande quanto o de Guimarães Rosa, é verdade, mas grande o suficiente pra se tornar algo único, a digital, aquele olhar que faz o corte, aquilo que muda a mensagem no quadro de avisos. Cada um pode ter o seu Diadorim particular, mesmo extraído de uma dupla sertaneja monossilábica. Basta que o olhar seja meio bambo, enviesado, cheio de surpresa.
Com um olhar sem garantias, a moça acaba passando a perna nesse mundo previsível. Atravessa seu Rubicão semanal. Enorme alívio! Mas se acham que é assim tão simples, Izabel Allende vem e joga água fria nessa plenitude: “Na escrita a felicidade não serve pra nada – sem sofrimento não há história”.
E com a dupla sertaneja contribuindo com a sofrência, deu caldo.
De qualquer maneira, a moça escapou dessa, mas na hora da aflição , o colt com cabo de madrepérola talvez seja uma melhor pedida. Uma sugestão. Ou uma tentação?



Maria Solange Amado Ladeira     -         26/03/2017

www.versiprosear.blogspot.com.br

Nenhum comentário:

Postar um comentário