Sempre é tempo de mudar


Postado em 15/04/2017
Sempre é tempo de mudar
Solange Amado

Era inteligente, habilidoso, criativo, espirituoso. Um leitor voraz, gostava de escrever e de contar histórias. Podia ter sido escritor, arquiteto, engenheiro, mas era dentista prático, que naqueles tempos idos, pelos interiores de Minas, nem Faculdade existia para aprender a lidar com as dentaduras alheias. Ia tudo na base de ensaio e erro. O fatídico motorzinho, barulhento e temido, parecia uma britadeira. Mas isso eu só soube de ouvi-lo contar. Quando nasci, essa atividade já havia sido posta pra escanteio. Bonitão, conquistador, chegou ostentando um belo bigode e montando um elegante cavalo branco, que nem era branco, nem era elegante, mas isso é só um detalhe, porque minha avó arriou os quatro pneus por esse belo mancebo. Ato contínuo, montou na garupa e levada por uma paixão galopante, e sem pensar duas vezes, deixou para trás sua vida de riquezas, criados e conforto e embarcou na canoa furada do amor tudo pode. The End.
Ou melhor, foi aí que na verdade a história começou. Filharada, labuta diária, dinheiro curto, e a moça fina e elegante, que tocava bandolim e apreciava roupas bonitas, teve de enfiar a mão na massa pra sobreviver. Vidinha de proletariado. A trancos e barrancos. Muitas brigas com o bigodudo já não tão charmoso aos seus olhos; e que a menininha que eu era, assistia assustada. As pendengas sempre acabavam num bordão murmurado entredentes pela minha avó: “Odeio ser pobre!”. Daí que eu herdei dela esse bom gosto. Mais do que jiló, odeio esse negócio de ser pobre. Tenho um enorme talento para a riqueza. Nunca o desenvolvi porque me faltou oportunidade. Não que eu acredite nessa balela de que riqueza traz felicidade. Não traz. Manda vir. Mas nunca acertei com o caminho das pedras. Essa riqueza delivery nunca achou a minha porta.
A cegonha passou por cima da Ilha de Skorpius, desistiu de pousar e veio dar com os costados num país de terceiro mundo; catou uma cidadezinha da zona da Mata mineira, e me largou aí, pelada e aos berros. Foi sacanagem. Resisti enquanto pude. Por fim, joguei a toalha. É tarde para me candidatar à vida política. Resta-me esse outro bordão de uvas verdes: “sou pobre, porém limpinha”.
Então tá. Continuo odiando ser pobre. Todo mundo já entendeu. Mas o que eu estava contando era a história do meu avô. Me enredei pelo cipoal das minhas lembranças e meio que me perdi.
Voltemos ao meu avô. Já bem velhinho e claudicante, ele começou a ruminar sobre seus dias de dentista e começou a acalentar a ideia de montar um consultório na garagem da casa. Media, desenhava, fazia planos, e cadê a grana pra comprar a parafernália necessária para exercer a profissão? Então, descobriu (não se sabe como), que em algum vilarejo ao redor da cidade, alguém estaria vendendo um consultório. E aí começou a atormentar a vida do meu tio, seu genro, um bem sucedido comerciante do pedaço. Percebendo que o sogro não estava lá batendo bem dos pinos, meu tio escorregava, escapulia, negaceava. E aí, meu avô ficou bravo. Começou a espalhar pela cidade que meu tio era um mão de vaca, pão duro, que se negava a realizar o último sonho de um velhinho, etc. e tal. Bom de papo, convencia os incautos que se insurgiam contra o genro.
Um dia, o genro desnaturado se cansou daquela lereia, chamou um de seus funcionários e ordenou: “Pegue o jipe, leve meu sogro para o raio desse lugarejo e compre o diabo desse consultório que ele está querendo, por qualquer preço”.
Chovia a cantaros. A estrada era de terra. O jipe atolava. O chofer descia, pedia ajuda, empurrava daqui e dali, e meu avô jovial, feliz da vida, acomodado no interior da viatura, tagarelava.
De repente, chegam ao centro do lugarejo. O chofer, exausto e todo molhado, pergunta: “Então, seu Nico, onde está o tal consultório que o senhor quer comprar?” Meu avô olha espantado para o homem: “Consultório? Que consultório?”.  “Aquele que seu genro vai montar para o senhor!”. Diz o chofer. E a resposta. “Ah! Eu já desconfiava. Então ele quer me explorar? Um velhinho como eu? Quer me fazer trabalhar pra ele? Que coisa! Tem gente que não se envergonha!”
Claro que ele espalhou a história e meu tio passou de mão de vaca a explorador da mão de obra de velhinhos.
É por isso que não perco as esperanças. Sempre é tempo de mudar.



Maria Solange Amado Ladeira                   15/04/2017
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