Ninguém foge à escrita
Solange Amado
Talento incomensurável pra costura, ela botou uma linha de
preguiçoso na agulha e mandou bala. Alea jacta est! O máximo que podia
acontecer era estragar aquele tecido delicado, suave, diáfano, com suas
manoplas de borracheiro. Não rolou. Sem jeiteza mandou lembrança. O tecido até
resistiu, mas o nó górdio que se formou na linha construiu uma teia de aranha
que ameaçou engolfá-la. Quanto mais tentava desfazer a minhoca de linhas, mais
se acentuava o desastre. Teve que depor as armas. Foi assim, melancolicamente,
que terminaram suas aulas de corte e costura e se acabaram os sonhos do pai, de
fazê-la uma mulher do lar.
Nova tentativa com aulas de culinária. Dessa vez foi mais
grave. Quase envenenou a família. A coisa terminou de vez, quando a panela de
pressão explodiu e a mancha de feijão no teto permaneceu por muitos anos pra
lembrar o fracasso de seus dotes de cozinheira. O pai assinou a rendição.
Ainda tentou mostrar ao pai, que podia costurar palavras e
fazer uma sopa de letrinhas bastante degustável, pelo menos para a plebe
ignara, pouco afeita a cardápios literários, que habita esse país. Inútil. Não
logrou êxito. Ninguém acreditava mais. Ainda mais que literatura é cardápio
sofisticado. Só para paladares aristocráticos. Faltava cacife. Tanto desajeito
a faria dar nó nas linhas e se embaralhar no próprio texto. Sem chance. Nada de
explodir para o mundo em 50 tons de cinza (cujo, ficou tão cinza que ela o
achou esquecido num balcão de farmácia, em plena sexta-feira da paixão). Então
é isso. Nem dólar, nem do lar.
Até pensou em escrever em mandarim. É fácil. Ninguém entende
mesmo. E não é preciso essa chatice de CCCC – clareza, concisão, coerência e
criatividade. Tanto CCCC que ela até podia se perder na sua sopa de letrinhas.
Mas justiça seja feita, até que produziu certa vez, um texto BBB – bom, bonito
e barato. Chegou perto. Bateu na trave.
De qualquer maneira, na falta de coisa melhor, a quase futura
mulher do lar persistiu no seu cardápio de costurar palavras e frases. Verdade
que a sua costura não obedece a nenhum CCCC, e frequentemente os pontos se
soltam, as calças ficam na mão e as vergonhas de fora. Os grandes costureiros
fazem muchocho, e se escandalizam; pedem linha curta, delicadeza nos gestos-.
Mas as mãos de cortadora de cana não têm lá muita finesse. Os pontos ficam
desajeitados, o molho muito picante, e as palavras ficam meio cruas.
A vida é complicada. Frequentemente, a costura, a culinária e
a literatura desandam. Dizem que a coisa está em combinar os ingredientes, o
segredo está em cortar excessos, o X da questão está no molho certo. Mas quem
consegue o molho certo na vida?
Na verdade, não podemos exigir muito da moça. Nenhuma das
mulheres da família notabilizou-se pelas prendas do lar. Ela saiu à escrita.
Até hoje, já no outono da vida, a garota abre a geladeira,
pega restos da refeição do dia anterior, joga na panela e sapeca um mexido.
Pega retalhos daquela saia capenga, emenda os pedaços, bota na máquina, e seja
o que Deus quiser, e Ele nunca quer. Tudo politicamente incorreto. E alguém aí
sabe o que é correto na política? Alguém já assistiu a um desfile maluco de
“haute couture”? Alguém já degustou iguarias exóticas, como baratas, em um
restaurante vietnamita? Então, não exijam muito. Um texto pão com manteiga tá
de bom tamanho. Pra quem é, bacalhau basta.
Maria Solange Amado Ladeira
21/02/2017
www.versiprosear.blogspot.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário