Essa Vida Mais ou Menos
Solange Amado
Lá fora
rolava uma ofegante epidemia chamada carnaval. Atrás daqueles muros altos a vida corria no
vai-da-valsa. Piscina, churrasco, trilha sonora de ACDC, água fria, sol e
cerveja na medida certa. Nada de política, que ninguém é de ferro.
Entre as mulheres rolava um papo cri-cri (criada e criança),
os homens se limitavam aos prazeres da carne – maminha, picanha, lingüiça, que
se abraçavam nos pratos numa suruba apetitosa. O tempero incluía um ti-ti-ti
sobre o fatídico e lazarento futebol, que homens não vivem sem bolas.
É quando a moça sai da piscina, se enrola em uma toalha e
hesita: lado cri-cri ou lado futebol? Desde a véspera vinha sentindo a
aproximação de uma nuvem ameaçadora daquilo que os italianos chamam “noia di
vivere”, e que no Brasil pode ser traduzido por “saco cheio” ou, se quiserem
maior requinte, uma “crise existencial”. Podia senti-la como uma nuvem pesada
pairando alguns metros acima da sua cabeça. Queria estar em Paris. Passar por
esse “mal de siècle” em francês pode ser menos dolorido e mais fashion. Mas não
estava em Paris. Era se contentar com a angústia existencial de terceiro mundo mesmo.
Tentou um conhecido remédio. Caçou seu livro perdido numa das
mesas, caçou seus óculos, que a vista já
não era tão moça assim.Foi aí que o dito cujo escapuliu das suas mãos e alguém
pisou em cima. Sempre pode piorar. Quem mandou ser pobre?
Mãos prestimosas tentaram colar com super bonder, mas só
conseguiram deixar inúmeras digitais gosmentas nas lentes. Sempre pode piorar.
E agora? Lado futebol ou lado cri-cri? A moça tentou a televisão, mas rolava lá
dentro uma porquinha chamada Peppa. Ou isso, ou Acadêmicos do Tucuruvi. Rima
com papo cri-cri. Sem chance.
Enrolada na toalha, a moça carregava pra cima e pra baixo,
como um objeto transicional, o livro do qual não enxergava as letras. Até que
uma alma caridosa se apiedou da sua angústia.
Partiram pra cidade, que não era Paris, mas quebrou o galho
com uns óculos de camelô. É verdade que já vieram meio tronchos, mas
conseguiram empurrar pra mais longe o papo cri-cri e o futebol. E até passaram
uma manteiga na angústia existencial. Ufa!
Entre os altos muros, a orgia da carne continuava. Dentro de
casa duas cozinheiras suavam a camisa fazendo sucos, fritando quitutes, subindo
e descendo pra alimentar tantas bocas exigentes.
Com seus óculos tronchos e seu livro, agora com letras, a
moça entra na cozinha a tempo de ouvir o que uma das cozinheiras diz pra outra:
“Amiga. Existe vida mais ou menos. Mas não presta não.”
Pois é. É disto que se trata. Essa vida mais ou menos anda
matando a moça aos pouquinhos.
Maria Solange Amado Ladeira 03/03/2017

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