As "meninas"


As “meninas”
Postado em 15/11/2016
Solange Amado

Chove lá fora. Minha alma embolorada cutuca as palavras estremunhadas. Elas não querem acordar. Ameaço abandoná-las, mas sou um corno manso. Por mais que elas me traiam, não sei viver sem elas. Paciência! Prometo um café da manhã com bolinhos de chuva. Elas abrem os olhos desconfiadas. Tá certo. Concedo. Às vezes não sou a melhor mãe do mundo. Mas quem disse que elas são as melhores filhas do mundo? Frequentemente não vão bem na escola. Atiçam os cachorros da vizinhança e com a maldade própria das crianças fazem bullying com os velhinhos das imediações. D. Genoveva com seu cachorro desengonçado é minha freguesa mais frequente nas reclamações.
É isso. Por mais que eu explique, a vizinhança parece não entender. Não é fácil ser mãe de tantas filhas. Cada uma com um temperamento mais bizarro que a outra. Claro. Produtos da genética, mas também de um meio ambiente que não colabora. Elas só refletem um mundo pirado.
Podem não acreditar, mas boto reparo em todas elas e tento dar atenção a todas. Como filha de Deus, não amo a todas igualmente, existem aquelas que me são mais chegadas, as que são mais carinhosas e as que são mais hostis.
Das minhas filhas, confesso que a Esperança é a mais focada. De olho no futuro, não perde tempo lamentando as agruras do presente. Arregaça as mangas e bota o pé na estrada com uma serenidade de fazer inveja. Em compensação, Paixão é um desastre. Mergulha de cabeça sem refletir. Ela e Fanática, sua irmã, não combinam com Crítica, outra das minhas filhas mais ponderadas. Elas enfiam os pés pelas mãos e sempre sobra pra mim. Lá vou eu interferir nos imbróglios dessa dupla imatura. Amor é uma criatura linda e doce. Admirada e cantada em verso e prosa. Mas só eu sei (mãe não se engana!) o quanto é sonsa. Ela e Labilidade, outra das minhas filhas, são inseparáveis. Quando a gente pensa que o rio tá correndo pro mar na santa paz do Senhor, elas dão de morder na mão que as afaga. E aí é melhor cantar noutra freguesia que não há tatu que aguente. É fim. Nem a interferência de Esperança dá jeito.
Também não sou lá mãe flor que se cheire. Tenho minhas preferências. Gosto pra caramba das filhas mais regateiras. Principalmente em dias embolorados. Cravo e canela é disso que eu gosto. Gosto duvidoso é certo. Algo mais chegado a baixo meretrício. Principalmente em dias nublados. Aí viro cafetina. Mando Pureza, Delicadeza e Romantismo pra casa da avó. Com tempo chuvoso elas ficam enjoativas. Chamo Malícia e vamos nos esbaldar com Prazer, sapeca desde muito pequena.
Em dias cinzentos e molhados, tiro férias do lirismo, gosto de algo mais forte, mais kitsch, que ninguém é de ferro. É o dia das minhas filhas politicamente incorretas se locupletarem.
Eu permito. Não só permito. Eu gosto. Eu curto. Gosto desse sem-vergonhismo sem fronteiras, sem barreiras, sem o fingimento dos que  barram a entrada de Merda nos seus salões de leitura, mas recebem e se sentem honrados quando Propina adentra gloriosa seus lares respeitáveis.
Enfim, minhas “meninas” formam um exército de Brancaleone. Confuso, desajeitado, fora dos padrões. Até, digamos assim, desrespeitoso com as almas puras e sensíveis dessa família de letras. Mas é assim que eu as quero. Pobres, porém limpinhas. Não obstante o resto do mundo.



Maria Solange Amado Ladeira    -   15/11/2016

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