Quando ele foi embora


Postado em 17/10/2016
Quando ele foi embora
Solange Amado

Quando ele foi embora, ela ficou assim pela metade. Sem vontade de estar inteira e se entregar para a vida. Só atravessava a rua na faixa de pedestres, e tinha muita pressa de não fazer nada. Quando ele foi embora, ela deixou de subir  no pé de manga e de andar na enxurrada sem pressa, sentindo a água fria molhando os pés e fazendo cócegas no seu dedo mindinho. Deixou até de encher as mãos no barro da beira do rio, e mergulhar com os peixinhos. Como faziam os dois. Nus. Se os curiosos não estavam de olho neles. Seu tesão escorreu pelos dedos e se perdeu num mundo comportado de terno e gravata. Só porque ele foi embora.
Me esqueci de dizer que, quando ele foi embora, levou as cores, porque não sei se sabem, ele era colorido e tinha uma luz intensa. Tanta. Que ela viveu enganada, roubando alguns bocados da sua cor, e iluminada com alguns restos do seu brilho.
Quando ele foi embora, ela desenhou rugas nas faces e encheu de algodão os seus cabelos. Guardou as emoções no fundo do armário e deu de economizar as palavras.
É isso. Ele era feito de palavras  e quando se foi, elas ficaram esparramadas pela casa num abandono de fazer dó.
No princípio, ela juntou as palavras e guardou tudo em sacos espalhados pela casa. Pensou em doar, mas não o fez, não se sabe porquê. Virou acumuladora. E as palavras ficaram ali, amontoando poeira e  insetos. Traças e troços de um passado que não desgrudava da pele, como sujeira acumulada. Os amigos se preocupavam, a vizinhança olhava de banda e ameaçava um abaixo assinado , com medo do contágio.Do abandono, mais que da sujeira.
Mas sem chance. Depois que ele foi embora, não dava pra jogar fora seus restos, aquelas palavras de estimação. Palavras ditas e escritas por ele, palavras trocadas em momentos tão significativos e degustadas no molho suave ou picante do amor. Palavras tão íntimas. Difícil se separar delas.
O apartamento era pequeno. Não cabia tanta bagagem. As portas já não fechavam. Precisava com urgência fazer uma triagem.Tentou desapegar. Timidamente a princípio. A bem da verdade, inúmeras vezes, tentou camuflar, tapear, enrolar esse esvaziamento. Mas aprendeu cedo que  palavras não suportam ser enganadas. Elas cobram autenticidade. Elas exigem que quem as manipula, mostre a  cara. Por mais que se resista, elas exigem liberdade.
Aos poucos foi pegando o jeito. Descobriu que palavras não pertencem a ninguém. Por isso, quando ele se foi, não as carregou consigo, porque elas não se sujeitam a nenhum cabresto. Devagarzinho foi aprendendo a vesti-las com modelos desenhados por ela. Descobriu que podia. Mais. Descobriu que não se guardam palavras cheias de naftalinas em sacos pela casa, talvez num pen drive na cachola, ou na memória de uma vida. Sem formação militar.
Na verdade, não foi nenhuma descoberta notável para a humanidade, essa, de que as palavras não pertencem a ele ou a ninguém. Mas no que lhe diz respeito, foi a travessia do Rubicão. Desde essa data, liberou geral. Sem preconceitos. Na maior curtição. Já as surpreendi até dormindo de conchinha.


Maria Solange Amado Ladeira                                 18/10/2016




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