Quando ele foi embora
Solange Amado
Quando ele foi embora, ela ficou assim pela metade. Sem
vontade de estar inteira e se entregar para a vida. Só atravessava a rua na
faixa de pedestres, e tinha muita pressa de não fazer nada. Quando ele foi
embora, ela deixou de subir no pé de
manga e de andar na enxurrada sem pressa, sentindo a água fria molhando os pés
e fazendo cócegas no seu dedo mindinho. Deixou até de encher as mãos no barro
da beira do rio, e mergulhar com os peixinhos. Como faziam os dois. Nus. Se os
curiosos não estavam de olho neles. Seu tesão escorreu pelos dedos e se perdeu
num mundo comportado de terno e gravata. Só porque ele foi embora.
Me esqueci de dizer que, quando ele foi embora, levou as
cores, porque não sei se sabem, ele era colorido e tinha uma luz intensa.
Tanta. Que ela viveu enganada, roubando alguns bocados da sua cor, e iluminada
com alguns restos do seu brilho.
Quando ele foi embora, ela desenhou rugas nas faces e encheu
de algodão os seus cabelos. Guardou as emoções no fundo do armário e deu de
economizar as palavras.
É isso. Ele era feito de palavras e quando se foi, elas ficaram esparramadas
pela casa num abandono de fazer dó.
No princípio, ela juntou as palavras e guardou tudo em sacos
espalhados pela casa. Pensou em doar, mas não o fez, não se sabe porquê. Virou
acumuladora. E as palavras ficaram ali, amontoando poeira e insetos. Traças e troços de um passado que não
desgrudava da pele, como sujeira acumulada. Os amigos se preocupavam, a
vizinhança olhava de banda e ameaçava um abaixo assinado , com medo do
contágio.Do abandono, mais que da sujeira.
Mas sem chance. Depois que ele foi embora, não dava pra jogar
fora seus restos, aquelas palavras de estimação. Palavras ditas e escritas por
ele, palavras trocadas em momentos tão significativos e degustadas no molho
suave ou picante do amor. Palavras tão íntimas. Difícil se separar delas.
O apartamento era pequeno. Não cabia tanta bagagem. As portas
já não fechavam. Precisava com urgência fazer uma triagem.Tentou desapegar.
Timidamente a princípio. A bem da verdade, inúmeras vezes, tentou camuflar,
tapear, enrolar esse esvaziamento. Mas aprendeu cedo que palavras não suportam ser enganadas. Elas
cobram autenticidade. Elas exigem que quem as manipula, mostre a cara. Por mais que se resista, elas exigem
liberdade.
Aos poucos foi pegando o jeito. Descobriu que palavras não
pertencem a ninguém. Por isso, quando ele se foi, não as carregou consigo,
porque elas não se sujeitam a nenhum cabresto. Devagarzinho foi aprendendo a
vesti-las com modelos desenhados por ela. Descobriu que podia. Mais. Descobriu
que não se guardam palavras cheias de naftalinas em sacos pela casa, talvez num
pen drive na cachola, ou na memória de uma vida. Sem formação militar.
Na verdade, não foi nenhuma descoberta notável para a
humanidade, essa, de que as palavras não pertencem a ele ou a ninguém. Mas no
que lhe diz respeito, foi a travessia do Rubicão. Desde essa data, liberou
geral. Sem preconceitos. Na maior curtição. Já as surpreendi até dormindo de
conchinha.
Maria Solange Amado Ladeira 18/10/2016
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