Postado em 10/10/2016
Escrever dói?
Solange Amado
Sala de espera de fisioterapeuta. Dor aqui, dor alí. Mais
gente estropiada chegando. À minha esquerda um senhor idoso lê um livro. Movida
por uma curiosidade malsã, me inclino perigosamente na cadeira tentando ler o
título do livro. Ele percebe o movimento e me mostra a capa. Trocamos
figurinhas. Eu gosto de ler. Ele também. Eu tenho “dor nos quarto”. Ele também.
Segue-se um animado papo. Falamos sobre dores, escritores e livros. Até que ele
é chamado para a sua sessão. Fico ali, com cara de sala de espera, até que um
casal adentra o recinto. Pelos trajes e comportamento meio tímido, arredio, percebo ser gente
humilde, talvez do interior. O sujeito se apoia pesadamente no ombro da mulher,
e tem uma fisionomia contraída de quem sente uma dor intensa. O fisioterapeuta
vem buscá-lo e o conduz pelo corredor que leva às salas. A mulher recua e se
senta na cadeira vaga ao meu lado. Pergunto
– mais uma vez minha curiosidade malsã! – o que ele tem. Ela me responde: “É
uma tal de dor asiática”. E vai em frente nas informações. Fico sabendo que
ele, o marido, trabalhava na roça. Aposentou-se e deu de escrever. Gosta desse
negócio. Enche cadernos e mais cadernos de muita escrevinhação. Não se sabe o
que escreve. A mulher tem pouca leitura, e ao que parece, pouca curiosidade. Já
se acostumou com essa mania esquisita. E até acha que talvez seja isto. Muito
tempo sentado na mesma posição escrevendo foi o que desembocou nessa “dor
asiática”. Fico pensando que o cara do livro, o aposentado da roça, e eu
estamos irmanados nessa dor: a das palavras.
Então é isso. Se alguém lhe passar uma mensagem dizendo que
“escrever não dói”. Não abra. É vírus. Melhor deletar logo que é caô dos
brabos. Tenho provas cabais do contrário: escrever dói. E muito. Pode não ser
uma lombalgia, uma dor ciática. Pode até não ser uma dor aguda. Talvez uma
coisa manhosa, que vai comendo pelas beiradinhas sem grande espalhafato. Mas
dói.
Não sei se as dores de um parto literário se assemelham às do
nascimento de um filho. Há controvérsia. Mas é inegável que há tremendas
semelhanças. E as expectativas sobre o nascituro em nada diferem. Dia desses,
na Praça da Liberdade, vi um casal com seu rebento num carrinho, ladeados pelo
que eu imaginei ser os dois casais de avós. Todos literalmente embevecidos.
Rolavam muitas fotos, poses, cuidados e carinhos. Dei uma espiada na cena. O
bebê era o próprio sagui humano: orelhudo, bocudo, olhudo. Mas a coisa mais
linda do mundo para aquela corte amorosa. É isso. Uma vez uma cliente me contou
que durante anos economizou pra comprar o seu primeiro carrinho. Deixava de
almoçar, de lanchar, de comprar qualquer coisa em prol dessa campanha. Até que
veio o grande dia. Nasceu um fusquinha velho, bastante castigado pela vida. E
aí ela o estacionava estrategicamente na rua em frente ao seu prédio e se
postava à janela, horas a fio admirando a cria, extremamente orgulhosa do seu
rebento. Mesmo depois, quando lhe foi possível voos mais altos e carros mais
potentes, nada se comparou à felicidade por esse filho de quatro rodas feioso e
cheio de necessidades especiais. Nada se comparou àquele parto tão sofrido,
àquela conquista tão dolorida.
Então, estamos conversados. Esse é o meu fusquinha velho, meu
sagui canhestro de hoje. Doeu. Acreditem ou não. Ainda bem que tem intervalo entre as dores.
Maria Solange Amado Ladeira
11/10/2016
WWW.versiprosear.blogspot.com.br
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