Postado em 26/09/2016
Primavera
Solange Amado
Devo falar sobre a primavera. Pelo menos, o calendário diz
que ela brotou na semana passada e tenho recebido toneladas de e-mails e tizaps
floridos, saudando esse suposto nascimento. É. Dizem que nasceu. Magrela,
mirrada, seca, torrada, mas todo mundo jura que nasceu. E se todo mundo afirma
que chegou, diz a boa educação que eu devo concordar e engrossar a fileira dos entusiasmados, geralmente os
poetas, que se apressam em rimar flor com dor e amor, que se não houver essa
rima, a vaca vai pro brejo, a poesia entra em colapso, os namorados não se
beijam e os passarinhos não cantam. Então, convém manter o calendário.
Não quero ser desmancha-prazeres, mas desconfio que a
natureza resolveu pular essa estação e entrar direto no verão, pra todo mundo
ficar bronzeado. O sol continua arrebentando mamona e estou pensando em
adquirir um camelo pra vencer os quarteirões que me separam dos meus afazeres
externos ao lar. O sol entra furioso pela janela, o canteiro em frente à minha
porta, que normalmente fica florido nessa época, mistura seus galhos exauridos
e pelados à fumaça dos ônibus. Meus miolos derretem, mas o calendário exibe uma
disposição primaveril de fazer inveja, e manda a compostura que a gente deslize
nesse vai-da-valsa. Então, abro os braços para o perfume das flores, o canto
dos pássaros, a água que desce da cachoeira, os campos verdes, o céu azul. Tô
fazendo a minha parte. Com os dois pés plantados no ar. Eu acredito!
E vai daí que vem me visitar a prima da Vera. A Vera, pra
quem não sabe, é minha amiga do peito. E ipso facto, a prima também se tornou.
Várias vezes por ano a gente se encontra, independente do calendário. Entre
comes e bebes ela me conta a história da sua avó, já falecida. A nobre senhora,
católica fervorosa, ia à missa toda semana e se confessava a cada 15 dias
escrupulosamente. Aproveitando que passava em frente ao mercadinho do seu
Manoel, entregava a ele a lista do que queria para aquela semana. Seu Manoel
embalava a encomenda e mandava entregar diligentemente na sua casa.
Eis que num domingo primaveril, a vovó acorda e era dia de
missa, de confissão e de mercadinho. Lista feita pro mercadinho, a vovó
resolveu que tinha pecado excepcionalmente naqueles 15 dias, e como sua memória
estava meio mambembe, resolveu fazer uma lista de pecados pra não deixar nada pra trás, inclusive os olhares gulosos
que andava trocando com seu vizinho da direita, um coronel reformado de não se
jogar fora (ela, uma senhora casada e temente a Deus!). Botou tudo no papel e
se pôs em marcha para a missa. Passou pelo mercadinho, deixou a lista de sempre
com seu Manoel, assistiu à Missa e se ajoelhou piedosa no confessionário. Sacou
a lista de pecados da bolsa e começou a recitar: 5 pães, duas cabeças de alho,
dois litros de leite...
Vocês hão de me perguntar o que a primavera tem a ver com a
história da prima da Vera? Sei não, mas já estou me perguntando: mudei eu, ou
mudou o natal? Ando confundindo as estações. Ou eu, ou o calendário. Tirante
que o meu vizinho de frente, que não é coronel reformado, breve vai entrar na
minha lista de confessionário.
Maria Solange Amado Ladeira -
27/09/2016
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