Ler é coisa de viado.
Solange Amado
Domingo. Nenhum trânsito. Sozinha no ponto de ônibus da
praça, abri meu livro e deixei o mundo lá fora, como faço sempre. Atrás de mim,
alguns meninos de rua disputavam uma pelada, temperada com muitos palavrões e
gritos. Não se preocupavam comigo, nem eu com eles. Não são presenças
ameaçadoras por ali. O Batalhão da PM, na esquina, faz um arranjo com eles: se
não assaltarem ninguém na praça, terão passe livre para dormir ou lavar suas roupas nas torneiras
espalhadas pelo espaço e usadas pelos lavadores de carro. As duas partes
cumprem o acordo religiosamente.Daí a minha tranquilidade.
De repente, senti um cutucão no braço: “Dona, ô dona!” O
garoto que me cutucava era miúdo, franzino, aparentava ter uns 10 anos. Vestia
um moleton rasgado, que mais mostrava do que cobria seus bracinhos finos,
naquele dia frio. Timidamente me disse: “A senhora gosta de ler”. Era uma
afirmação, não uma pergunta. Dei um sorriso e ele continuou: “Eu fico olhando,
a senhora sempre lê um livro enquanto espera o ônibus. Mas não é o mesmo livro,
já reparei, às vezes é grosso, às vezes é fino. Hoje a senhora caprichou. Esse
aí é um tijolo”. Pergunto se ele quer pegar o “tijolo”. Ele pega o livro com
muito cuidado e reverência nas mãos sujinhas, levanta-o como se fosse o cálice
da Santa Missa, sente o seu peso e pergunta se tem figuras. Digo que não.
“Gosto de livros com figuras ou fotografias. Mais fácil de ler. Não cansam. Tem
alguns na minha escola. Já li todos, mas são muito infantis. Já me cansei de
lobos maus, sapinhos, carneirinhos. Sobre o que é esse livro da senhora?” Explico
que é sobre a vida de um médico famoso chamado Freud, que cuidava da cabeça dos
outros. “De gente pirada?” Isso aí, eu digo. Ele volta os olhos para o livro e
saca que não está escrito em português: “Esse eu não posso ler, só pra gente
que já leu tudo. E o que são essas letrinhas miudinhas aqui embaixo?” Tento
explicar pra ele o que são “notas de pé de página” e para que são usadas. “Ah!
Entendi. O sujeito escreve depois tem de explicar o que escreveu. Deve ser
coisa de gringo.” Pergunto se ele gostaria de alguns livros mais da sua idade,
que não fossem sapinhos e coelhinhos. Seus olhos se acenderam, mas desconfiado,
se remexe no banco e olha cautelosamente para os seus amigos jogando bola atrás
de nós. “A senhora está falando sério?” A senhora deixa eu ler assim sem eu
pagar nada?” Confirmo. “Meu padrasto não gosta de livros. Eu escondo os que
acho no lixo, mas ele bota fogo. Diz que pobre precisa trabalhar, diz que ler é
coisa de malandro, de viado e poema é coisa de mocinha. Meus amigos ficam me
zoando. Acham que tem alguma coisa errada comigo.” Pergunto se ele acha que tem
alguma coisa errada comigo, porque eu também gosto de ler. E ele: “mas eu sou
homem. E todo mundo acha que homem sempre com livro na mão recitando poema é
coisa de viadagem.” Asseguro que não e renovo a minha oferta. Combinamos que
ele pode passar no meu edifício, do outro lado da rua, perguntar por mim ao
porteiro, eu desço e lhe entrego os livros, ele pode devolver depois que acabar
de ler. E aí, meu ônibus chega.
Não me esqueci da promessa. Juntei alguns livros que poderiam
interessar a adolescentes, coloquei no escaninho, mas como aquele alemão alto e
loiro já anda me espreitando, me esqueci de avisar ao porteiro.
Duas semanas se passaram e nada. Não o encontrei mais na
praça. Outro dia perguntei ao porteiro se algum menino de rua magrinho, com um
moleton rasgado tinha ido me procurar dia desses. E ouço: “Veio um menino aí
meio esfarrapado umas três vêzes. Queria entrar, perguntou pela senhora, mas eu
manjo esses garotos, Veio com uma conversa de livro. Eu enxotei ele. Pobre que
gosta de livros? Malandragem. Queria era
passar a perna na senhora. Conheço essas manhas. Pura viadagem!”
Não sei se um dia ele vai descobrir que ler, se a gente tirar
só uma sílaba, vira uma grande viagem.
Maria Solange Amado Ladeira 20/09/2016
www.versiprosear.blogspot.com.br
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