Ler é coisa de viado

Postado em 15/09/2016
Ler é coisa de viado.
Solange Amado

Domingo. Nenhum trânsito. Sozinha no ponto de ônibus da praça, abri meu livro e deixei o mundo lá fora, como faço sempre. Atrás de mim, alguns meninos de rua disputavam uma pelada, temperada com muitos palavrões e gritos. Não se preocupavam comigo, nem eu com eles. Não são presenças ameaçadoras por ali. O Batalhão da PM, na esquina, faz um arranjo com eles: se não assaltarem ninguém na praça, terão passe livre para dormir   ou lavar suas roupas nas torneiras espalhadas pelo espaço e usadas pelos lavadores de carro. As duas partes cumprem o acordo religiosamente.Daí a minha tranquilidade.
De repente, senti um cutucão no braço: “Dona, ô dona!” O garoto que me cutucava era miúdo, franzino, aparentava ter uns 10 anos. Vestia um moleton rasgado, que mais mostrava do que cobria seus bracinhos finos, naquele dia frio. Timidamente me disse: “A senhora gosta de ler”. Era uma afirmação, não uma pergunta. Dei um sorriso e ele continuou: “Eu fico olhando, a senhora sempre lê um livro enquanto espera o ônibus. Mas não é o mesmo livro, já reparei, às vezes é grosso, às vezes é fino. Hoje a senhora caprichou. Esse aí é um tijolo”. Pergunto se ele quer pegar o “tijolo”. Ele pega o livro com muito cuidado e reverência nas mãos sujinhas, levanta-o como se fosse o cálice da Santa Missa, sente o seu peso e pergunta se tem figuras. Digo que não. “Gosto de livros com figuras ou fotografias. Mais fácil de ler. Não cansam. Tem alguns na minha escola. Já li todos, mas são muito infantis. Já me cansei de lobos maus, sapinhos, carneirinhos. Sobre o que é esse livro da senhora?” Explico que é sobre a vida de um médico famoso chamado Freud, que cuidava da cabeça dos outros. “De gente pirada?” Isso aí, eu digo. Ele volta os olhos para o livro e saca que não está escrito em português: “Esse eu não posso ler, só pra gente que já leu tudo. E o que são essas letrinhas miudinhas aqui embaixo?” Tento explicar pra ele o que são “notas de pé de página” e para que são usadas. “Ah! Entendi. O sujeito escreve depois tem de explicar o que escreveu. Deve ser coisa de gringo.” Pergunto se ele gostaria de alguns livros mais da sua idade, que não fossem sapinhos e coelhinhos. Seus olhos se acenderam, mas desconfiado, se remexe no banco e olha cautelosamente para os seus amigos jogando bola atrás de nós. “A senhora está falando sério?” A senhora deixa eu ler assim sem eu pagar nada?” Confirmo. “Meu padrasto não gosta de livros. Eu escondo os que acho no lixo, mas ele bota fogo. Diz que pobre precisa trabalhar, diz que ler é coisa de malandro, de viado e poema é coisa de mocinha. Meus amigos ficam me zoando. Acham que tem alguma coisa errada comigo.” Pergunto se ele acha que tem alguma coisa errada comigo, porque eu também gosto de ler. E ele: “mas eu sou homem. E todo mundo acha que homem sempre com livro na mão recitando poema é coisa de viadagem.” Asseguro que não e renovo a minha oferta. Combinamos que ele pode passar no meu edifício, do outro lado da rua, perguntar por mim ao porteiro, eu desço e lhe entrego os livros, ele pode devolver depois que acabar de ler. E aí, meu ônibus chega.
Não me esqueci da promessa. Juntei alguns livros que poderiam interessar a adolescentes, coloquei no escaninho, mas como aquele alemão alto e loiro já anda me espreitando, me esqueci de avisar ao porteiro.
Duas semanas se passaram e nada. Não o encontrei mais na praça. Outro dia perguntei ao porteiro se algum menino de rua magrinho, com um moleton rasgado tinha ido me procurar dia desses. E ouço: “Veio um menino aí meio esfarrapado umas três vêzes. Queria entrar, perguntou pela senhora, mas eu manjo esses garotos, Veio com uma conversa de livro. Eu enxotei ele. Pobre que gosta de livros?  Malandragem. Queria era passar a perna na senhora. Conheço essas manhas. Pura viadagem!”
Não sei se um dia ele vai descobrir que ler, se a gente tirar só uma sílaba, vira uma grande viagem.



Maria Solange Amado Ladeira                                    20/09/2016
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