A verdade
Solange Amado
Nos meus primórdios escolares, toda chegada de férias era
seguida de um dever de casa: a fatídica redação denominada “Minhas férias”.
Tinha gente que ia pra a praia (e me causava a maior inveja), tinha gente que
ficava em casa e aproveitava para farrear com os amigos, tinha gente que
visitava parentes e amigos em outras paragens; e tinha eu, que em todas as
férias, fazia o “caminho da roça”. Passava os dias numa ilhota, no meio do Rio
Pomba, a “Ilha de Santa Helena”, que era do meu avô, e de onde só se podia sair
ou entrar de balsa. O nosso presídio particular, no dizer do chofer do ônibus
que nos carregava e a quem o meu pai nos recomendava. Depois de 3 horas de
viagem, tempo que levávamos pra atravessar a distância entre Muriaé e
Cataguases, éramos depositados do lado de cá do rio. Meu avô vinha nos buscar
numa balsa bem artesanal.
Não que fosse ruim. Longe disso. Era um tempo de nos perder
pelo mato, eu e meu irmão, de subir em árvores, comer fruta no pé, atormentar
as galinhas, pegar piolho, bicho de pé, ver matar porco e outras milongas. Fora
o frisson da originalidade. Não era Skorpius, mas era uma ilha. Oh! Particular.
Oh!
Na verdade, o que me incomodava era a repetição do mesmo. A
falta de imaginação dos meus pais. O cardápio não variava.
Naquele tempo, eu era muito honesta. Não sacava que a verdade
é só um detalhe e que é melhor dois pássaros voando na imaginação do que um,
preso na mão da realidade.
Ninguém quer saber o que você fez ou deixou de fazer “na
real”, o que as pessoas querem é viajar na maionese das suas experiências
imaginárias. Eu não sabia disso. Hoje eu sei, mas talvez não tenha tempo de
mentir o suficiente para que me acreditem.
Esse foi o conselho dado pelo grande diretor de cinema
Federico Fellini ao ator, iniciante na época, Anthony Quinn: “Não diga a
verdade aos jornalistas. Minta. Invente histórias. É um exercício. Com isso tem
de usar a imaginação, tem de pensar”. E arrematava: “se você diz a verdade,
fica colado nela. Não vai a lugar nenhum. Sua criatividade fica parada”. *
Minha ilha não precisava ser sempre a de Santa Helena no Rio
Pomba, antes de tudo podia ser a ilha da Fantasia, perdida no Oceano Atlântico
ou no Pacífico. Podia ser Pasárgada onde eu escolheria um leito pra dormir com
o George Clooney. Podia ser qualquer lugar onde eu fosse amiga do rei.
Na verdade, não escolho onde eu vou cair nessas férias. Quais
ilhas me acolherão ou resgatarão meu pensamento à deriva num oceano de
palavras.
O certo, o verdadeiro, o real é que estou com os dois pés plantados
no ar. Não estou em terra firme. Desconfio que minha vida não é bem assim um
trocadilho, mas uma troca de ilhas, como com Bonaparte. E já que temos em comum
a Ilha de Santa Helena, que tal montar o cavalo branco de Napoleão, que fuja a
galope quando a festa acabar?
E, se querem saber, confiem em mim. Nessas férias vou pegar
uma nau sem rumo. Vou até a beirada do mundo espiar um pouco e trocar algumas
figurinhas. Acreditam?
·
“Tango Solo” – Anthony Quinn com
Daniel Paisner – Edit. Nova Fronteira – p. 204.
Maria Solange Amado Ladeira -
02/07/2016
www.versiprosear.blogspot.com.br
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