Postado em 22/06/2016
O corte
Solange Amado
Alguém, perdido na memória, já disse: “A única coisa pior do
que se perder em detalhes e não ver o todo, é focar no todo e não ver os
detalhes”. Falou e disse. Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. E é
isso escrever. Lá adiante tem o objetivo marcando presença, mas os detalhes de
que lançamos mão no caminho a percorrer, fazem toda a diferença. Bobagens: um
desfile de formigas, um por do sol, um sabiá laranjeira, uma folia, uma estrepulia,
um bamboleio. Sei lá. O importante é se equilibrar depois dessa guinada,
permitindo-se o atalho, o detalhe, mas sem ficar curtindo eternamente o berço
esplêndido desse mesmo lugar. O sabiá voa, o por do sol se esvai, outro dia
vem. Nesse caso, mais do que nunca, convém cortar na repetição, na acomodação,
bom dar um susto na mesmice. Corta!
Escrever é um desassossego contínuo. É se curar da tentação
que nos impõe a mediocridade.
Freud dizia que o sintoma é a repetição do mesmo. O sintoma é
absolutamente monótono, não tem criatividade nenhuma. Urge um corte. É claro.
Não posso não repetir. Mas é importante repetir diferente. Lacan usava uma
imagem para ilustrar essa proposição: o regato desce da montanha e vai fazendo
um sulco no chão, e aí passa sempre pelo mesmo lugar. É o sintoma. Para
interromper a monotonia desse caminho, é preciso um corte, é preciso que
tracemos outras possibilidades e mudemos o curso. A psicanálise faz esse corte,
através da palavra, ou se quiserem, da interpretação. É sempre um susto, uma
surpresa, mas permite a formação de algo novo. É assim a literatura, pelo
menos, a boa literatura. É desse corte que eu gosto. Não o corte da amputação,
mas o corte que nos permite navegar em outras águas, com um novo curso, quando
estamos perdidos nessa repetição paralisante.
Literatura e vida são tarefas corajosas, porque se apoiam no
inesperado, no susto, em algo que incomoda, que obriga o regato de palavras a correr
por caminhos diferentes, surpreendendo o leitor.
Já está provado que a “cura pela palavra” de Freud se apoia
na interpretação, nesse “corte” feito no sintoma. O bisturi da palavra vai
direto na zona do agrião. E desmancha a certeza presumida. E como não existe
certeza, a gente entende aí que a “cura”
é bem relativa porque como diz o próprio Freud, ninguém se cura da vida. E nem
da literatura, pode-se acrescentar. Não se diz tudo.
Então, cortemos os entretantos e vamos aos finalmentes. É bom
cortar. Pequenos cortes. Se os finalmentes prometem, enxugue as abobrinhas para
que o leitor não tenha uma indigestão antes do final da festa. Mas só se valer
a pena. Só se as abobrinhas forem pelo menos, saborosas. Do contrário, se não
for para introduzir um molho diferente, é chover no molhado.
Não é boa política cortar por cortar. Só se for pra mudar o
curso. Só se for pra desestabilizar.
Mas se for bom, às vezes, basta baixar o fogo e o leitor
embarca na sua culinária de palavras e abobrinhas.
Maria Solange Amado Ladeira 14/06/2016
www.versiprosear.blogspot.com.br
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