Nascimento


Nascimento
Solange Amado

Estou com uma coceirinha persistente na cabeça. Já dei tratos à bola pra saber de onde vem essa sensação miudinha, que vai fazendo uma picada pelos cabelos e abrindo caminho teimosamente, doida para respirar. Digamos que é uma coceira idiopática. Não dá pra descobrir a causa. Se não for piolho, penso que possa estar dando à luz uma ideia. Já não era sem tempo.
Só tem um problema. Esse nascimento anda encroado. Vou ter de dar uma mãozinha, talvez careça uma cesariana.  A ideia tá atravessada. Mais um pouco e esse feto não sobrevive.
Menino ou menina? A essa altura, o gênero não importa, nem se é bonito ou feio. Foi concebido “in vitro”. Especula-se que sejam gêmeos: Denotação e Conotação. Nomes já escolhidos, independente de quem dá à luz, pelos palpiteiros de plantão, é claro. Porque eu já tenho um nome na algibeira. É só sacar. Ninguém vai nomear minha coceirinha sem meu consentimento. E aviso: não obstante as expectativas, não serão ideias gêmeas. Já dei à luz uma ideia dupla e conheço os sintomas. Não é uma coceira a quatro mãos. E se querem saber, eu não daria mais conta de duas ideias ao mesmo tempo. Se eu cuido da Denotação, a Conotação chora, se engasga, querendo atenção. Ela é um bebê rebelde, manhoso, estressado, muito mais do que o outro, que se encaixa bem nas rotinas do dia. De qualquer maneira, ideias são custosas, são caprichosas, exigem cuidado, atenção, querem ser alimentadas no meio da noite, interrompem meus momentos de lazer, meu café da manhã e até o meu banho diário. Nenhuma cerimônia.
Tirante isso, sou uma mãe severa. Em geral, não dou moleza. Quando um bem maior se alevanta na minha horta, deixo que elas façam pirraça. Dou o maior gelo. Não é hora de atazanar minha cachola. Deixo isso bem claro.
Pode ser que mais tarde eu me arrependa de não dar a devida atenção às minhas crias em muitos momentos. Mesmo quando elas ameaçam invadir e ocupar meus miolos à força, como um MST enfurecido. Quem manda sou eu. E essa não é uma terra improdutiva. Tem dono. Não permito que façam de mim uma casa da mãe Joana. Mesmo que a minha plantação seque, que o terreno esteja ácido, mesmo que alguma lagarta coma  80% da produção das minhas ideias; mesmo que pensem estar ganhando terreno com um jeito meio sonso de não sei, não vi, cheguei agora. O golpe da bobeira não cola. Mesmo assim, estou no comando. E só passo o bastão pra elas, quando tenho certeza de que a minha ética e minha filosofia estão sendo respeitadas. Quando ameaçam revolução, levanto logo um cartaz: “não vai ter golpe”. Podem estrebuchar.
É isso. Querem me impor os gêmeos Denotação e Conotação, que são siameses, diga-se de passagem. Têm uma mesma espinha dorsal. Se tentarem separar, um deles morre. Já viram os dois separados por aí? Nunca vi. E juro que não sofro dessa sonsice que assola o país de olhar para o lado e se fazer de boba.
Dito isso, chegou a hora. Dou um empurrão final. Nasce a minha cria. Nada de gêmeos. Uma criatura mirradinha, feiosa, magrinha, mas não a rejeito. É minha. E tenho o maior orgulho porque ela resistiu. Não obstante as imposições, as pressões, ela detonou legal.
Nada de Conotação ou Denotação. O nome dela vai ser DETONAÇÃO. Já tinha escolhido.





Maria Solange Amado Ladeira                                     29/03/2016
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