Postado em 27/05/2016
Reflexões de um reflexo no espelho
Solange Amado
Me olho no espelho. Do lado de lá a imagem também me olha
como se me conhecesse. Não é gay. Não é Dorian Gray. Então não importa. É
apenas um reflexo. E já ando cansada de reflexos. Tudo muito automático. Gosto
mais de reflexões, mas elas andam em falta. Desapareceram do mercado. Tentei
comprar uma ontem, mas não encontrei. A gente tem de pegar o reflexo que acha e
os produtos são da pior qualidade. Como esse aqui: “Reflexões de um reflexo no
espelho”. Já vou avisando. Vou superfaturar.
Já começa mal. Espelho quebrado, com marcas de ferrugem. Daí
que o reflexo fica comprometido. Não sei se mais pra retrô ou mais pra vintage.
Alguém me explicou a diferença entre os dois outro dia. Achei firmeza. Mas não
registrei muito bem. Acho que tô mais pra retrô. E meu reflexo reflete essa
confusão de um conceito mal assimilado. Aliás, eu todinha sou um conceito mal
assimilado. Vivo mais ou menos. Entreaberto botão, entrefechada rosa.
Eu gostava muito de antigamente. Tudo era preto no branco.
Com uma antiga mente, a gente não precisava pensar sutilezas. Tinha pingulim ou
não tinha. Era homem ou mulher. Hoje tudo é “ou não”. Pingulim não é mais
garantia. Então, fiquei meio assim, às avessas, uma mulher meio retrô.
Não fiquem me olhando de banda. A dúvida não é comigo, a
história é de um livro que acabo de ler: “As meninas ocultas de Cabul”* Como lá
por aquelas bandas, a mulher só é útil pra parir, todas as famílias têm de ter,
pelo menos um filho homem ou estão lascadas. Homem que só faz mulheres não tem
o respeito da comunidade e mulher que só pare mulheres não serve nem pra jogar
fora. E vai daí que a autora do livro vai visitar, entre outros, um casebre
paupérrimo em que o proprietário tinha mulher e onze filhas, todas mulheres.
Claro, nenhuma delas podia trabalhar ou sair à rua sem um acompanhante
masculino e nem mostrar nadica de nada das suas figuras. E tome trapo pra se
cobrir. Só cozinhar, lavar, e se sufocar no calor e na poeira de cômodos
fechados. E o papai só bebia. O que, diga-se de passagem, dá pra entender. O
pobre homem tem de trabalhar, bater na mulherada, defender a honra de todas
elas e se assegurar da virgindade de suas onze crias, moeda de troca importante
com os prováveis genros (que não aparecem porque lá, menos com menos não dá
mais). E o homem ainda tinha de rezar não sei quantas vezes por dia, voltado
pra Meca. Vai daí que virou recatado e
do bar.
A solução, segundo a autora, pra essa e inúmeras outras famílias, é pegar uma das
meninas, e fazer dela uma “basha posh”, ou seja, uma mulher-homem. Tudo com as bênçãos
do mulá e a conivência da sociedade. A menina escolhida, tem de cortar os
cabelos, vestir-se de homem, vai pra rua, trabalha, sustenta a casa,
comporta-se como homem. Só não tem o pingulim. Na nossa sociedade nós temos um
equivalente, o tal de “rouba mas faz” . Quer dizer, não tá certo, mas quebra o
galho, então vamos deixar como está.
É claro que a garota obedece. Mas quando chega à idade
casadoira, ela vira moeda de troca, então é hora de desfazer a troca, voltar
tudo à vaca fria. E agora, José? Ou melhor, e agora, Maria?
A questão é: quais as consequências psicológicas dessa
violência? Como será a imagem no espelho dessas meninas de Cabul? Como será
mudar de gênero como se muda de roupa? Como se equilibrar nessa (in)certeza?
Como pisar nesse chão tão (in) seguro? De que modo pisar? O que me diz a minha imagem
no espelho? Nossa lógica bate de frente com a lógica deles. Não existem
sutilezas. Não se questiona. Alá mandou, o mulá mandou, o pai mandou. Mulher
não reflete. Não tem questões. O que, diabos, é ser mulher?
Pois é. O X da questão e o que a autora ressalta, é um
aspecto interessante. Numa sociedade em que os homens têm o maior cuidado em
não proporcionar muito prazer às suas mulheres, por medo de que elas gostem e
comecem a desejar a maçã do vizinho, o que será que vai acontecer quando estas
puderem experimentar uma troca de papéis? E depois de experimentar o poder dos
homens, elas voltarão obedientemente ao papel passivo? Danou-se!
Eu, por mim, só fico botando reparo. Desconfio que quando a boiada
estourar, quando perceberem que não há garantia mesmo, que esse poder é falso,
que não há certeza, não vai ter pingulim que dê conta.
Maria Solange Amado Ladeira 24/05/2016
*As meninas ocultas de Cabul – Jenny Nordberg – Companhia das
Letras – 1ª. Edição.
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