Memórias


Postado em 23/05/2016
Memórias
Solange Amado

Dizem que velho não tem memória. Nunca vi mentira mais deslavada. É só questão de estratégia. Os velhos pegam as suas memórias, jogam pra trás, e de vez em quando vão lá e começam a catar daqui e dali. Quem sabe assim, conseguem atrasar aquele fatídico encontro com a dama de preto com a foice na mão. Um recuo estratégico.
E foi aí,que o filósofo Edgar Morin escreveu um livro de memórias. Eu lí salivando “Minha Paris, minha memória”. A Paris tão charmosa, do Café de Flore, de Sartre, Simone de Beauvoir e... perfeição! De Marguerite Duras. Minha “ídola” em tempos idos. O garoto andando solto pelos arrondissements de Paris, o jovem engajado tão firmemente na Resistncia Francesa, o homem apaixonado, de muitas mulheres, o filósofo de fala inteligente, que papeava com Duras na mesa de um bar. Isso é que são memórias!
Dizem que dor de amor dói em qualquer lugar, mas em París é muito melhor! É nisso que eu estava pensando quando depois de uma semana visitando os lugares da minha infância, que eu não via há 50 anos, passei por lá: “Minha Sinimbu, minha memória”.
O ônibus fez uma curva inesperada e ela, a paisagem, apareceu: a capelinha minúscula, azul e branca, com sua escadinha, a sua cruz na fachada, a estação de trem, os trilhos, ao longe os boizinhos pastando e colinas verdes. Mas foi a casa que me provocou um jorro de saudades. Igualzinha. Surpreendentemente bem conservada, com sua varanda enorme de treliças, janelas altas na fachada, flores, muitas flores. Era alí que moravam meus avós paternos. Uma pequena estação de trens entre o nada e o lugar nenhum, mas onde cabia Paris inteira. E o Café de Flore certamente não tinha o cheiro do café da minha avó, minha tia moendo na hora os grãos. Paris inteira nunca teve os meus boizinhos feitos de batata, pés de palito e olhinhos de arroz. E o chão da sala recendendo a cera passada com escovão. E o apito da Maria Fumaça. E os braços da minha avó que me seguravam firmes nos degraus da escada. Maior espetáculo da terra! Sinimbu, minha Paris particular.
De repente a saudade me escorreu pelos olhos. Os braços seguros da minha avó me sustentando acima dos perigos do mundo. O maquinista me cumprimentando elegantemente com seu boné já meio manchado por muitas tardes de suor. O comissário abrindo sua mala e oferecendo ali mesmo, tecidos, bolsas, panelas. Famílias inteiras com uma escadinha de filhos, perdidas entre sacolas, descendo ou subindo no trem. E o cheiro de café com broa inundando a varanda. O cheiro da minha avó pairando sobre todos os outros, de sabonete “Alma das Flores”. Três numa caixinha que ela guardava para mim.
Há pouco tempo me desfiz da última caixinha de “Alma das Flores”. Substituí por uma de madeira, com a torre Eiffel na tampa, que não tem cheiro nenhum, muito menos o da minha avó. Cheiro que só aparece quando levanto a tampa da minha caixa de lembranças.
Quem disse que velho não tem memória? Cada um tem sua Paris guardada na sua caixinha de “Alma das Flores”.






Maria Solange Amado Ladeira                                      Sarau  22/05/2016 –Casa da Suzana

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