O jacaré


Postado em 31/05/2016
O jacaré
Solange Amado

Ela era muito preguiçosa para ser uma cria ativa. Era só uma cria. Uma cria das palavras. Era uma escritora. Se se pode dizer assim de alguém que escrevinha. E porque fazer não era seu verbo preferido, danava a imaginar, que era um verbo muito mais interessante. Foi aí que resolveu criar a história de um jacaré, que era o que melhor se adaptava à sua preguicite. História de jacaré é fácil de fazer, que jacaré é um bicho muito na dele. Quenta sol em cima da pedra, pensa na morte do bezerro, abre e fecha os olhos. No geral dá uma boa banana pro mundo à sua volta. Qualquer um faz uma história de jacaré.
Mas nossa amiga não simpatizava muito com jacarés verdes ou marrons, que seriam assim, jacarés meio ralés, iguais a qualquer jacaré normal. E será que normal é criativo? Na dúvida optou por um jacaré vermelho. Da raça jaca red. Antes pensou em fazer uma história sobre um elefante amarelo – um yellow fante. Mas vetou a ideia. Ia virar uma história pesada e suja. Melhor amarelar e não embarcar nessa. Mais seguro ficar com o jacaré vermelho.
Assim, surgiu a história de uma jacaré vermelho, que além da vida mansa no meio do rio, só saía do seu dolce far niente quando a fome começava a lhe roer as entranhas. Aí, abria a bocarra com fúria e engolia qualquer coisa (a escritora não era muito versada em cardápio de jacarés, principalmente os vermelhos), peixes, bichos e humanos. E como humanos são muito indigestos, ele tinha o cuidado de comer essas criaturas em doses homeopáticas. Ocasionalmente um pé, uma perna, um braço; cabeça, só sem o recheio dos miolos, um veneno para jacarés vermelhos. Era educado. Ficava satisfeito com pequenas doses, não obstante sua enorme bocarra cheia de dentes. Era parco no consumo de calorias. Não se tem notícia de jacarés muito gordos.
O problema dele foi exatamente a mastigação. Não escovava os  dentes, nem passava fio dental. Suas perninhas e bracinhos curtinhos não alcançam a dentadura. E mastigando tanta carne, foi inevitável a dor de dentes monstra que o acometeu. As bactérias fazendo a maior festa na sua boca. Com tantas dores, o jacaré andava deprimido e infeliz.
Foi aí que entrou a criatividade. Qualquer mesmice tem algo próximo da originalidade. Até para os jacarés vermelhos.
Nosso jacaré não perdeu tempo. Começou uma viva negociação com os passarinhos que viviam em algazarra nas árvores à sua volta. Eles poderiam se banquetear com os restos alojados nos seus dentões. Em contrapartida, ele não fecharia a bocarra engolindo-os. Eles poderiam se locupletar à vontade. Um acordo de cavalheiros. Não acho que tenha sido uma ideia criativa, visto que passarinhos não são famosos por terem os pés no chão e vivem flanando. Difícil confiar em quem vive no mundo da lua. Mas vá se fiar em cabeça de jacaré!
Durante algum tempo até que funcionou. Os dentes do jacaré vermelho viviam numa limpeza de fazer gosto. Bastava ir fazer a sesta no meio da pedra, fechar os olhinhos, abrir o bocão e os passarinhos se amontoavam recolhendo os alimentos entre seus dentes.
Enquanto ficou de pé esse acordo mambembe, todos foram felizes para sempre. Mas todos sabem que jacarés vermelhos e passarinhos não são confiáveis. Coitado de quem bota fé neles! São mestres na mentira, no engodo, na ambição desmedida, fantasiada daquela paz de quentar sol. Foi aí que nosso jacaré deu de fechar a bocarra e engolir um tantão de passarinhos de barriguinhas cheias.
Bem feito! Hoje, no meio do lago Paranoá, um jacaré vermelho sofrendo as agonias de uma gigantesca dor de dente não tem sossego de quentar sol. Mais ou menos de cinco em cinco minutos, um passarinho faz cocô na sua cabeça.
Tá legal, essa história não é lá das melhores. Mas nossa escritora também não é. Eu já tinha avisado. Talvez da próxima vez, ela faça uma história sobre um yellow fante e se saia melhor. Todo mundo pode ser original. Até um elefante amarelo.


Maria Solange Amado Ladeira                                  31/05/2016

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