Zezinho e Maria


Postado em 29/04/2016
Zezinho e Maria
Solange Amado
Ele não era João, era José. Eu era Maria. A história deveria ser de Joãozinho e Maria, mas já começou melada. De qualquer maneira, isso não tem importância nenhuma, de vez que não nos perdemos na floresta, nem fomos abandonados por nossos pais.
O cenário é uma pequena ilha no Rio Pomba, Cataguases, zona da Mata mineira, que pertencia ao meu avô, e os melhores momentos da minha infância pertencem a ela; o garoto era filho do empregado. Formávamos uma dupla aventureira que, num calor de arrebentar mamona, pés no chão, piolho de galinha, carrapatos até na alma, surgíamos no fim do dia, pra desespero da minha avó, exaustos e pacificados por uma tarde inteira de estripulias numa ilhota minúscula, mas com muito mais charme do que a Ilha da Fantasia, para nossas modestas ambições infantis.
E lá íamos nós, Zezinho e Maria nos perdendo pelo mato, aparecendo e desaparecendo como coelhinhos assustados. Na maioria das vezes, esquecíamos de deixar uma trilha de bolinhas de pão pelo meio do caminho, justamente para não sermos encontrados. Melhor do que uma mesa de café, com pão, bolo e leite, era escalar as árvores como macacos,e roubar frutas diretamente do pé.  Robinson Crusoé e Sexta Feira, que com aquele calor,  mais parecia um modorrento domingo à tarde.
Era um dia normal, saímos de mansinho depois do almoço, antes que minha avó inventasse de nos dar alguma obrigação. O sol esturricava a terra e nossos miolos, e a gente nem notava essa particularidade porque brincávamos de esconde esconde com um coelho que tinha seu cafofo nas imediações; era um coelho distímico, sujeito a mudanças bruscas de humor,  e quando cismava de abandonar a brincadeira, simplesmente  botava o pé, ou as patas no caminho e desaparecia no matagal e o negócio aí era se mancar e vazar dali, procurando ocupação noutra freguesia.
Àquela altura, a tarde já estava caindo e começamos a sentir uma estranha fraqueza. Com a fome e a sede nós já estávamos acostumados, mas ali no meio do mato, na terra de ninguém, só havia pra beber a água barrenta do rio e perder tempo de procurar a mesa de café, era impensável, melhor era subir no pé e pescar as frutas, laranjas, mixiricas, mangas, etc.
Pé de manga muito alto, era só subir e nos servir, mas e aquela fraqueza, aquela malemolencia estranha, aquela sensação de enjôo? Começamos a catar as mangas do chão, semi comidas pelos passarinhos e ainda quentes do sol abrasador.
Foi assim que nos encontraram, meio mortos por uma insolação braba e excesso de manga estragada, que nos rendeu dois dias de hospital e piriri e de quebra, a proibição de flanar na hora do sol mais quente. A liberdade às vezes cobra um aluguel incômodo. Mas pelo menos não existia protetor solar, nem contraindicação de pés descalços e escalavrados no final do dia, nenhum medo de que pudéssemos nos afogar no rio.

Pensando bem, a história é muito melhor do que a de Joãozinho e Maria, mas menos inocente, de vez que muitos anos depois, a ilha virou o bordel da cidade. Ao invés de atravessar o rio de balsa, construíram uma ponte, a casa ganhou tentáculos de cimento e tijolos e ninguém mais deve ter insolação, de vez que as estripulias são feitas à noite. Vai ver, até embaixo da minha mangueira preferida.



Maria Solange Amado Ladeira –          - 17/03/2013
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