Postado em 27/04/2016
Percalços de uma babá
Solange Amado
Foi assim. Meio no improviso. No calor do momento. Todos
tinham compromisso naquela tarde. Menos eu. Alguém fez a proposta indecorosa e
eu aceitei de forma desavisada. Eu devia atacar de babá, por uma tarde inteira,
de um garotinho de 5 anos, enquanto o resto do pessoal cuidava da sua vida.
Nada muito preocupante.
O garotinho em questão não tem uma aparência ameaçadora,
desde que, conforme me avisaram, não lhe seja oferecido nenhum alimento,
líquido ou sólido. Essa é uma operação que desencadeia uma revolta tipo estado
islâmico. O garoto, ao que parece, tem sérias intenções de se dedicar ao
faquirismo. Magrinho, franzino e perguntador compulsivo, não parece mesmo nada
ameaçador. Gosta de TV, celular, tablet, computador, qualquer coisa da era
digital. Sabe tudo sobre super heróis e não aprecia as historinhas infantis. O
que o fascina mesmo são livros e atlas sobre o funcionamento do corpo humano,
esqueleto, sistema circulatório, neurológico, etc. que a gente tem de ler pra
ele ad nauseam, nomes de ossos, veias, artérias, órgãos do corpo com nomes
complicados. Dá uma canseira louca, mas ele ouve tudo com ar absolutamente
contrito.
E aí, quando nos vimos sozinhos e ele me pediu pra ligar a TV
no seu desenho preferido, respirei aliviada. Assim fica mais fácil. Peguei os
controles, pelejei por um longo tempo e, dinossaura que sou, tive que depor as
armas. Complicado demais. Tive de admitir a derrota. Com uma vozinha
desconfiada, ele me propõe uma alternativa: eu posso contar pra ele sobre o
aparelho circulatório. Confesso a minha ignorância. Impossível. Não achamos os
livros que ele tem sobre o assunto. Pegamos, então, um livro com uma historinha
de gambá, que ele acha muito infantil, mas tem uma curiosidade: “você sabe o
que um gambá come?” Penso em responder “formigas!” Mas logo percebo que isso é
alimento de tamanduá. Lamento, tenho de pedir ajuda aos universitários. Não sei
o que um gambá come. Após um silêncio incômodo ele me diz: “Você não sabe ligar
a TV, você não sabe contar a história do aparelho circulatório, você não sabe
dizer o que um gambá come. O que tem dentro do seu cérebro?” Confesso que
também não sei, mas pra tentar recompor minha reputação, ofereço pra lhe contar
uma historinha infantil. O que ele não sabe é que só sei três historinhas
infantis: D. Baratinha, Chapeuzinho Vermelho e Os três porquinhos, que eu ouvia
nos velhos tempos, em 78 rotações e que, honra seja feita, sei cantar tudinho e
imitar as vozes dos animais. Alguma utilidade deve ter. Não deu ibope. Ele
ficou indignado quando a D. Baratinha se recusou a casar com o boizinho e
escolheu o ratinho como esposo. Fazer o quê? Mau gosto é mau gosto. E a coisa
ficou feia quando o D. Ratão caiu na panela de feijão. “Tem certeza? Como é que
ele ia subir na panela sem queimar as patinhas?” Invento que ele pediu a escada
magirus aos bombeiros pra dar uma espiada. Sem chance. Os bombeiros não
emprestam a escada, só eles sabem manipulá-la.
Melhor passar ao Chapeuzinho Vermelho. Mas quando digo que o
Chapeuzinho Vermelho desobedeceu a mamãe e passou pela estrada da floresta, ele
me corrigiu. “Uai, pra ir pra casa da vovó, só mesmo pela estrada do rio. Não
existe outra estrada!” Só aí percebo que as avós dele moram no Rio de Janeiro. Suspiro.
Além disso, por que o Lobo Mau não comeu logo o Chapeuzinho? Não sei. Eu também
me faço a mesma pergunta. E desisto da história quando ele me indaga se os
caçadores abriram a barriga do lobo pra tirar a vovozinha no sentido do
comprimento ou da largura.
Nesse momento, ele aponta algumas manchinhas em meu braço: “O
que é isso?” Respondo que a pele, quando fica envelhecida, fica assim mesmo, com
manchas. Ele não me dá refresco: “O que está envelhecido é a sua derme ou sua
epiderme?” Essa é fácil responder. É avesso e direito.
De repente ele some da sala. Respiro aliviada. Um pouco de
paz. Poucos minutos depois, me viro e dou de cara com um super herói com uma
máscara vermelha e dourada lhe cobrindo o rosto. Finjo levar um susto: “Ai! Que
medo! O cavaleiro de ferro!” Tentativa frustrada: “Você entende tudo errado.
Primeiro, não é cavaleiro de ferro, é HOMEM de ferro; segundo, não é pra ter
medo dele, ele é do bem.” E o que é que ele faz de bem? Pergunto. “Ele salva a
humanidade!”. Como? Pergunto mais uma vez. “É fácil. Ele faz assim”. Fecha a
mão e a estende como se fosse dar um soco no ar. Resmungo: “Grande coisa.
Conheço um homem que fez esse mesmo gesto, não salvou ninguém, nem a própria
pele e só complicou as coisas nesse país”. “Ah! Então esse aí é do mal”.
Finaliza.
A essa altura já estou arrasada, minha competência e minha
autoestima já estão abaixo do nível do mar. Mas sou salva pelo gongo. “Você não
sabe falar nada do aparelho circulatório. E do aparelho digestivo?” Crio alma
nova. Desse eu sei. E me lanço em uma descrição sobre comer, triturar os
alimentos, que passam pelo esôfago, para o estômago, e o que não é aproveitado
no estômago e no intestino é descartado. “O que é descartado?” Bom, vira cocô e
o organismo expulsa. “Ah! Então o cocô não vale nada? É o xixi que vale”?
Como a conversa estava ficando um tanto escatológica, mostrei
o esqueleto humano e disse que a gente come pra botar um pouco de carne em cima
dos ossos, apontando os ossinhos salientes dele. E ouço: “Carne não. Músculos”.
Não é mesmo meu dia de acertar!
O dia já está virando noite quando noto que o super herói
dança e troca as pernas sem parar. Ordeno: “Corra para o banheiro! Vá fazer
xixi!”
Minutos depois entro no banheiro e encontro o homem de ferro
todo molhado e choroso. Não conseguiu
despir a tempo a roupa complicada de super herói.
E quando o pessoal da casa chega, me encontra exausta, com um
homem de ferro mijado e soluçante nos braços.
Não deu certo. Da próxima vez, vou me oferecer pra passear
com o cachorro. Muito mais seguro.
Maria Solange Amado Ladeira 19/04/16
www.versiprosear.blogspot.com.br
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