Postado em 01/05/2016
Você é ninguém também?
Solange Amado
O telefone
toca. Atendo. Uma voz grave, masculina, diz o nome e pergunta se eu o reconheço. Não. A voz não me diz nada.
Ele ri e começa a refrescar a minha memória. Me lembrei de um poema de Emily
Dickinson: “ Eu sou ninguém... “
Mais de vinte anos se passaram. Ele me apareceu quando tinha
seis anos. Estava bem no meio da sala, mas era um buraco negro. Uma batata
quente na animada partida disputada entre papai e mamãe, e o juiz. A escola
distribuía cartões vermelhos ora pra um
ora pro outro, e já ameaçava jogar a toalha. Sobrou pra mim o empurra empurra.
O mordomo é o culpado. Elementar, meu caro Watson. E era tão claro, que
queimava a retina. Todo mundo olhava para aquela figurinha óbvia no centro do
tablado e ninguém enxergava. E se não enxergavam, bobagem existir. É o outro
que me constitui. Foi assim que ele apareceu no meu consultório.
Não tenho um nome, anunciava com petulância. Pode me chamar
de qualquer coisa. Não importa. Bastava ser o ponto cego no meio daquela guerra
conjugal. Foi quando me lembrei de Emily Dickinson. “I´m nobody. Who
are you? Are you nobody too?” “Eu sou ninguém. Quem é você? Você é ninguém também?”
Não o atormentei. Era preciso espaço naquela terra de
ninguém. Era preciso que eu me sentasse com ele. E esperasse. “Then, there´s a
pair of us”. “Então há um par de nós”. “Don´t tell! They´d advertise. You
know”. “Não diga nada, eles vão espalhar isso. Você sabe!”
E eu não disse. Não disse que ele já sabia ler e escrever.
Era preciso que tudo permanecesse na moita. Só naquele espaço de negação ele se sentia seguro. “How dreary
to be somebody. How public, like a frog, to tell one´s name – the
lovelong june to an admiring bog”. “Quão triste ser alguém, quão publico, como a rã passar o
junho inteiro a anunciar seu nome para os aplausos da lama”. Quão ameaçador era
para aquela pessoinha existir.
Era assim que ele encarava o mundo: a lama. Encarava tudo do
alto da sua empáfia. Ligava o foda-se em qualquer lugar. Na escola, recusava-se
a fazer as provas, simplesmente saia deambulando. Só topou entrar na minha sala
porque a curiosidade venceu. Durante muito tempo só ficou fazendo um inventário
do que havia ali e testou minha paciência.
Pode deixar. Esquece. Isso não tem importância. Tanto faz.
Pra que? Abortar qualquer ação era a sua especialidade. Mas aquela ausência
tinha força. Era um menino bonito, vivo, e exalava energia. Mas era como se só
vivesse nos entretantos. Nunca chegava aos finalmente. Não chutava a gol. Tinha
jogo de cintura, driblava, recebia o passe, mas de cara com o gol, chutava pra
fora, entregava a rapadura. Não estou mais aqui. Na hora H se recusava a ficar
coaxando em vão seu nome para os aplausos da lama. Fui.
A história só começou a mudar no dia em que ele me deu um
presente. Nesse dia, ele se fez presente. Exigiu que a avó comprasse um
sabonete líquido, algo bem caro, numa bela embalagem. Acontece que as crianças
detonaram o sabonete em dois tempos lavando os pinceis numa água de arco-íris.
Comprei um sabonete mais barato, coloquei no mesmo recipiente. E a vida
continuou. Ninguém deu pela coisa, até que ele chegou. Bateu os olhos, botou na
mão, cheirou e me fuzilou com os olhos:” Isso o que você fez foi muito
desonesto! Não posso aceitar!”
“Não posso aceitar” foi melodia para os meus ouvidos. A
indignação é lugar de alguém. “Você garante que não vai fazer mais isso?”
Não! Não há garantia. Continuei a ser desonesta. Pelo menos
no que respeita a sabonete líquido não sou confiável. Ele se lembra disso. E
nós dois rimos. A única garantia é a de continuar se indignando. A indignação
enxerga. É o que identifica aquele que existe.
Maria Solange Amado Ladeira www.versiprosear.blogspot.com.br
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