Vida de cachorro


Postado em 24/04/16
Vida de cachorro
Solange Amado

Não consigo entender os humanos, ou seriam desumanos? Gosto dessa minha vida de vagabundear pelas ruas no seu mundo. Gosto do movimento, do barulho e, principalmente dos cheiros, levanto o meu focinho e farejo, principalmente bares e restaurantes com mesas na calçada. O desperdício é grande e eu me locupleto. Farejo principalmente gente. Sei reconhecer facilmente quem é confiável, ao contrário dos humanos que engolem gato por lebre aos montões. Sou feliz assim. Completa liberdade. É só ir vivendo sem preocupações com o que chamam de convenções sociais. Nada de fazer figuração. A gente faz o que dá na telha. Se uma cadela cruza o meu caminho e me interessa, parto logo pra ação. Verdade que ela tem de topar. A gente fareja um ao outro. Não é assim tão gratuito. Mas uma vez estabelecido que o cheiro é confiável, a gente não se perde em grandes elocrubações – se é preta ou branca, gorda ou magra, rica ou pobre, feia ou bonita, feminina ou não, culta ou não. Se houver diferença de gênero, vai dar caldo. E depois, cada um toma seu rumo, nada de juramentos de fidelidade, discutir a relação, incompatibilidade de gênios, e inúmeras outras variáveis. É preto no branco. Nada de complicação.
Vida de cachorro é assim, bem simples. Tudo a céu aberto. Claro, com os cachorros de madame a coisa muda de figura. Os pobres coitados sofrem uma lavagem cerebral e é um tal de fazer festinhas nos donos que vai dando nojo. Quanto mais escravizados, mais se parecem com os humanos, arfando de desejo de agradar. Cachorro domesticado sofre da Síndrome de Estocolmo, identificam-se com o agressor e acabam se acostumando com o cabresto da prisão domiciliar. Levam uma vida de mulheres de harém: fausto e mordomias, comidinhas, fatiotas, sapatinhos, pet shops. Mas firmemente presos na coleira. Não estou me referindo a esses castrati. Falo da legítima alma animal. A fibra e a garra dos cães que não se dobram a um arremedo de liberdade.
Em geral, somos da paz. Tratamos bem a quem nos trata bem, sem muitos festejos, que os humanos não são muito confiáveis. É claro, às vezes a gente perde as estribeiras. Aconteceu essa semana comigo. Deu vontade de fazer xixi e como sempre, procurei meu poste preferido. Meus amigos já sabem que alí é meu banheiro particular e respeitam isso. Essa é outra das qualidades caninas, demarcamos o nosso território, sem precisar de registro em cartório. Cheguei primeiro e os outros reconhecem. O mundo é grande, não carecem disputas, invejas, ciúmes e outras complicações humanas. Se tem dono, a gente vai cantar noutra freguesia, mas em geral, a gente empresta o lugar de boa vontade.
Bom, mas estou me alongando inutilmente. Vamos ao incidente da semana passada, quando perdi as estribeiras. Virei a esquina a fim de satisfazer uma necessidade fisiológica, e qual não foi a surpresa, ao verificar que o lugar estava ocupado. Um casal em pé de guerra. Quer dizer, a mulher guerreava, o homem só tentava se proteger, levando socos,  pontapés, chaves de braço, ouvindo poucas e boas: “ordinário! Cretino! Safado! Cachorro!” E foi aí que minhas orelhas se eriçaram. Mania infeliz que os humanos têm de reservar ao cachorro os mais abjetos adjetivos. A raiva me engoliu. Nós, cachorros não somos assim tão mansos quando ferem os nossos brios. Avancei rosnando grosso e apliquei-lhe uma mordida feia. Não me arrependo. Ela mereceu. E depois, se é briga, tem de ser em pé de igualdade: bate e apanha .Covardia não. Excesso de mansidão também me dá nos nervos. Os machos têm de ser solidários.
De fato, não consigo entender os humanos e seus valores enviesados. Não seria capaz de viver num sistema tão complicado de costumes. Mesmo com toda a elasticidade moral do nosso mundo canino, a gente tem limites.
Não sei, talvez a única coisa que ainda me atrai no mundo dos humanos, a experiência impossível no mundo canino, é poder fazer toda a sorte de cachorradas impunemente. Isso sim, é só deles.

Maria Solange Amado Ladeira – 03/12/13
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