Postado em 05/04/2016
Um homem mal criado?
Solange Amado
No princípio não era bem o verbo. Apenas um balbucio. Mais
exatamente um cio. Deus tinha acabado de criar o homem. E já se
arrependia. Sua intenção era ótima, mas
não deu muito certo, ao que parece.
Pegou o esboço, franziu a testa. O que na prancheta tinha
funcionado de maneira harmoniosa, aqui na maquete deixava uma pulga atrás da
orelha. O sistema de escoamento certamente deixava a desejar. Fatalmente,
aquela torneirinha minúscula, com um sistema complexo de molas para colocá-la
apta ao funcionamento, seria o ponto frágil. Já dava pra prever. Deus coçou a
cabeça. Era experimentar e ver no que dava esse projeto.
Deus planejava dotar o homem de um complicado sistema de
circunvoluções chamado cérebro, que o permitisse pensar, e mais do que isso,
falar, poder comunicar suas elocrubações, e até que deu certo. O planejamento
funcionou. Claro, já disse, no início não foi logo o verbo. Apenas o balbucio.
Ou o cio, porque, bem cedo, Deus percebeu que, por algum erro de estratégia, a
máquina pensante do homem tinha ficado ligada ao seu sistema de escoamento.
É isso. Por um cálculo mal feito na instalação da fiação
ligando os diversos sistemas da criatura recém- inventada, a torneirinha, cuja
função deveria ser apenas de escoamento do elemento líquido usado pra amaciar,
limpar, desinfetar tantas trocas dessa máquina humana, criou vida própria:
começou a pensar. E a falar.
O homem frequentemente pensava (e falava!) com a sua
torneirinha. Uma coisa bem embaraçosa. Esse embaralhamento dos fios
comunicantes jamais foi resolvido, mesmo com toda a ajuda do Espírito Santo,
convocado a intervir no processo.
Mais e mais, no decorrer do tempo, o Criador, estarrecido, foi
constatando que o homem pensava com seu pingolim, em detrimento daquele
mecanismo complexo que se chama cérebro. O que fazer?
Se por um lado esse fato simplifica em muito o trajeto cheio
de variáveis do pensamento humano, por outro dá ensejo a um mau entendimento
severo em assuntos que necessitam raciocínios mais complexos. Nessas ocasiões,
a torneirinha interfere com um joelhaço digno de um analista de Bagé. A
sutileza do discurso vai pro espaço.
Por essas e outras é que a mulher apareceu no pedaço. Era
preciso outra criatura que neutralizasse esse funcionamento desastroso do
cérebro humano. E assim foi. Projeto feito, por precaução eliminou-se a
torneirinha. Sem pingolim, a mulher representaria menos perigo de um
funcionamento perverso. Era preciso alguém que usasse o aparelho fonador com
mais precisão, alguém que dominasse o palavrório. Era preciso passar do
balbucio à palavra. Do cio ao discurso.
Estamos nesse pé. E se posso palpitar nesse processo, a
mulher, atrapalhada com tanta responsabilidade, a meu ver, anda pisando na
bola. Ao invés de chamar o homem às falas, anda incorporando os falos. E essa
briga entre a fala e o falo, longe de resolver a questão, só aumenta a
complexidade do problema.
De qualquer maneira, Deus ainda não desistiu. Prova disso é
que entre falos e falas, já aparecem algumas fal(h)as. Uma letrinha pra quebrar
um pouco essa dicotomia e quem sabe, mostrar que entre vice e versa, a solução
talvez seja o verso.
Maria Solange Amado Ladeira
- 14/10/2014
www.versiprosear.blogspot.com.br
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