Postado em 03/04/2016
Tudo o que balança cai?
Solange Amado
Nem tudo o que balança cai. Mas dizem que tudo o que babá
lança, cai. Ou pelo menos, deveria. Só que, no meu caso deu errado. Não caí. A
criança que existe em mim nunca foi destituída, e vem interferindo pela vida
afora, em todas as decisões que tomo depois de adulta. Talvez a culpa seja da
minha babá, que calculou mal o lançamento.
Mas pensando bem, justiça seja feita, meu próprio sobrenome
não me oferece muita garantia. LADEIRA permite dois movimentos: subida e
descida. Duas direções do desejo. E é sempre uma encrenca quando se tem duas
direções pela frente. Subir ou descer? Ousar ou desistir? Guardar ou entregar?
Em qualquer direção podemos dar com os burros n’água. E pior, a gente tem de se
haver com as consequências da escolha: administrar o fracasso, relativizar o
sucesso, viver a culpa. Sem nenhuma desculpa. A vida é assim: barroca, cheia de
contradições, dura, crua, hiperbólica, paradoxal.
E pelo sim pelo não, decidi que se a vida é ladeira acima e
ladeira abaixo, se na hora H em que eu preciso de todo o equilíbrio e
maturidade de um adulto, a criança entra na área e avacalha minha pose, se nem
a babá nem Herodes deram jeito nessa criancinha, decidi entregar a rapadura: o
real não está com nada, vou me situar no sonho, lá não tem marmelada, lá tem
todas as direções em uma só, lá não é preciso administrar nada, não tem
compromisso com promessas, lá posso infringir alegremente, um por um, os 10
mandamentos. E ninguém tem nada com isso.
Por enquanto, sou só uma excentricidade medíocre, mas quando
o sucesso me bafejar, vou encher a boca e dizer, que nem Edgar Allan Poe, se
possível em inglês: “I became insane with long intervals of horrible sanity”.
Me tornei insano, com longos intervalos de horrível sanidade. A questão é essa:
sanidade. Vocês podem não acreditar, acho graça quando alguém diz que tenho
“inclinação” para a escrita. Pois eu escrevo, justamente para diminuir a
inclinação, pra manter o equilíbrio. Chego na beirada do mundo e caio se não
tiver uma rede de palavras que me segure. Saramago diz que ninguém vai salvar o
mundo com aquilo que escreve. Ainda bem. Quando muito, pretendo salvar a mim
mesma. É por isso que existe em mim esse blá blá blá. Vai ver, tudo o que blá
blá lança, cai.
E aí chegamos a Gabriel García Márquez e seu desejo frustrado
de ser mágico: “sou escritor por causa da timidez. Minha verdadeira vocação é
ser mágico, mas fico tão encabulado tentando fazer os truques que tive de me
refugiar na solidão da literatura”. Quer mágica maior do que a literatura?
Meus olhos gulosos seguem ávidos as pistas que o autor
espalha pelo chão da página. Ele não usa letras. Não escreve. Borda. Pontinho
por pontinho vai aparecendo a trama no bastidor da folha. Devagar, com a
suavidade de uma onda mansa lambendo a praia, o desenho vai se completando e
não ouso respirar até que se complete a trama. Como um bom amante, o autor sabe
me deitar com sensualidade na sua cama de palavras, ou ao contrário, vai me
despindo aos trambolhões enquanto me come pelas beiradinhas. E eu me vejo
indefesa, morna, passiva nessa parceria lasciva,
Por mais que eu queira, não consigo resistir a um tsunami de
talento.Quer mágica maior? Muito melhor do que tirar coelhinhos da cartola, é
soltar essa criança, essa louca que existe em mim, dar um tempo nessa horrível
sanidade, alçar um voo kamikaze de palavras. Sem me importar se o blá blá lança
e eu caio.
Maria Solange Amado Ladeira www.versiprosear.blogspot.com.br
12/08/14
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