Toda nudez será castigada


Postado em 02/04/2016
Toda nudez será castigada
Solange Amado
Minha primeira grande surra de chinelo foi por um motivo no mínimo exdrúxulo: saí do banho e desfilei pelada para o meu melhor amigo. Foi uma surra e tanto. É nisso que dá os ataques de bobice infantil. A gente tá sempre levando tinta. Que eu saiba, Lady Godiva não levou nenhuma palmada ao se exibir pelada para uma cidade inteira e ainda no lombo de um cavalo. E eu nem sabia que minha mãe estaria chegando naquela hora...  E depois, ele era meu melhor amigo. Grande coisa me ver pelada!
Tomar banho às cinco da tarde era um dever cívico, pelo menos para a minha mãe, que interrompia qualquer atividade mais importante que a gente estivesse fazendo pra me fazer entrar debaixo de um chuveiro ridículo e ainda ficar ouvindo ela gritando lá do quarto: “não se esqueça das orelhas!” Pra que lavar as orelhas se elas estão sempre limpinhas e escondidas debaixo dos cabelos? Os pés, tudo bem, mas só em alguns dias, em outros não precisava, que eles ficavam limpinhos de andar na enxurrada que descia lá do Cemitério. Sensação boa, depois da chuva, subir pelos cantos da rua, sentindo a  avalanche de água enrodilhando minhas pernas. Gastei saliva pra convencer o Biel, ou melhor, José Gabriel, como a mãe e o pai nazista enchiam a boca ao falar dele. Mas voltando ao Biel, gastei foi muita saliva pra fazê-lo aceitar alguns prazeres inocentes. Ele estava sempre com medo de alguma coisa ou de alguém. Cabia a mim pular as cercas e abrir caminho à sua coragem. Tive de lhe ensinar alguns palavrões, que ficavam só entre nós. Nem merda ele falava. Puta que o pariu então, ele só falava quando eu ameaçava não brincar da próxima vez, mas era um puta que o pariu tão tímido, tão casto, que perdia a graça. Imagine levar uma surra por aparecer pelada na frente de um garoto que chamava pinto de pênis. Parecia um lord inglês. Ficava vermelho  como um pimentão só de ver a beirada da minha calcinha quando trepávamos na jabuticabeira  do fundo do quintal.
O Biel me dava nos nervos. Meu bailado à la Isadora Duncan, era uma tentativa desesperada de dar ibope junto ao meu amigo, mas, deu um ibope danado foi  junto ao chinelo da minha mãe. Daí eu não ter nunca perdoado ele. Fui ao cadafalso por nada.
Até hoje eu não entendo como eu via, ou melhor, como eu não via a paixonite aguda que saia por todos os poros do meu amigo, que, do alto dos seus doze anos, não sabia como lidar com seus hormônios, sua sensualidade ou sexualidade nascente, que se esparramavam pelo seu pequeno ser com a força de uma avalanche. Eu ainda não havia alcançado essa grande compreensão. Pra mim, meu amigo era um anjo submisso, cuja concordância, rubores e suores eternos diante de tudo o que eu dizia ou fazia, me tirava do sério. A única coisa que eu precisava era provocar alguma reação nele. O projeto Isadora Duncan passava por aí. A única coisa que não entrava na história era o chinelo da minha mãe.
De qualquer maneira, a surra despertou em nós dois um “Fiat lux”nunca dantes navegado. Foi o início de uma intimidade cheia de promessas. Promessas essas que nunca se cumpriram. Três meses depois, fui embora da nossa cidade, e nunca mais nos vimos.
Nelson Rodrigues tinha razão: Toda nudez será castigada.

Maria Solange Amado Ladeira –03/11/12

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