To be or not to be


Postado em 31/03/2016
To be or not to be
Solange Amado
O cara passava em cima da ponte quando supitou a vontade de morrer. Não por algum motivo em particular. Não carecia de motivos pra deixar essa porcaria de mundo pra trás. Era pegar ou largar. A vida nunca lhe deu tratamento cinco estrelas. Já andava cansado daquele reme reme de anonimato. De viver no porão, no sub solo da sociedade, colhendo os restos da mesa onde a felicidade se banqueteava. E ele alí, se arrastando num buraco interminável qual tatu bola. Logo ele que lutava pra estar na crista da onda, sob as luzes da ribalta. Mas sempre deu tudo errado. Sofrer de mediocridade é meio ridículo. Porque era isso. Não havia  nenhuma desgraça feérica envolvendo a sua vida. Não foi achado na lata de lixo, não sofreu abusos na infância, não passou fome nem frio, não foi carente de amor materno ou paterno. Aliás, o problema foi exatamente esse: o mormaço. Não ter grandes problemas já era um problema. Aquele acúmulo de domingos mornos em procissão vazia. Nunca conseguiu cruzar a ponte sobre esse nada. Era invisível. Simples assim.
E então, apareceu aquela bendita ponte. O rio lá embaixo escorrendo tão preguiçoso e sonolento quanto a marcha lenta da sua existência. Foi fácil quando a ideia atravessou como um raio a sua cabeça: a de dar uma boa banana para o resto de seus dias. Foi fácil subir pela armação da ponte. Nunca havia feito algo tão ousado. O friozinho na barriga somou-se ao friozinho da noite. Pela primeira vez se sentiu dono dos seus movimentos. Queria. Podia. Ia fazer algo insólito. Sentiu-se poderoso quando atingiu o pilar mais alto. E aí estacou. O que foi mesmo que o levou alí?
De repente, o telefone toca na redação. E sobrou pro pobre do foca. Alguém quer pular do alto da ponte da cidade. Pouca coisa. E ele alí. Não importava se já tinha passado em muito a hora de se mandar. Não importava se a sua fome era negra. Não importava se naquela mesma tarde, o grande amor da sua vida tinha se mandado com outro idiota da redação. Não importava se pular da ponte era tudo o que gostaria de fazer naquela noite. Algum sacana chegou primeiro e roubou a sua ideia. Bom, mas notícia não tem hora nem lugar. Jornalista não é dono de si mesmo, está a serviço de todos os birutas que resolvem fazer salto ornamental de cima da ponte. É adiar sua fome, seu desespero, a dor de cotovelo, botar de lado o cansaço e enfrentar o futuro saltador, esperando que o cara não seja muito amigo da onça e abrevie o show, porque estomago e cotovelo começam a ficar meio impacientes depois de um dia inteiro no pequeno hospício que era a redação.
Engoliu a irritação e partiu para o teatro de operações, bafejado pela ideia consoladora: suicídio sempre dá ibope. Podia farejar um furo de reportagem. Quem sabe? Quem sabe o coleguinha na ponte ia quebrar o seu galho?
Um bocado de gente reunida, o indefectível coral gritando: “pula!”, “pula!”. E nada acontecia. A cada hora a multidão aumentava e o coral ganhava força. O repórter lá embaixo ouvia gregos e troianos, prós e contras, polícia, ambulância, bombeiros, o homem lá em cima não se mexia.  As horas passando e o homem lá em cima impávido. Nada de pular. Lá embaixo, a alma dilacerada e faminta do repórter sentia raiva e inveja do cidadão no alto da ponte. Até que a paciência se esgotou. Resolveu subir. Se o camarada não se jogasse logo, era ele quem ia despencar lá de cima sem dó nem piedade. E de cabeça, pra enterrar de vez o chifre recém adquirido. O jeito era subir e acabar de vez com o impasse. Afinal, se Maomé não vai à montanha...
Não soube de onde surgiu tanta coragem. Fome, desespero, angústia o impulsionaram. Driblou polícia, médicos, enfermeiros e forçou a barra. O camarada suicida deve ter farejado uma alma irmã, porque permitiu sua aproximação. Até que ficaram lado a lado.
Não se sabe o que duas almas destroçadas têm a conversar entre si, o fato é que se entenderam. Se iam se jogar ou não, pouco importava naquele momento. Lá de cima a paisagem era maravilhosa, holofotes iluminavam as duas solitárias figuras. O coral vindo de baixo era impressionante e exigia resultados. Momento único nas suas vidas tão comuns. Agora era só escolher. To be or not to be. E alguém aí tem alguma sugestão?



Maria Solange Amado Ladeira                  06/05/14

www.versiprosear.blogspot.com.br

Nenhum comentário:

Postar um comentário