Ter ou ser?


Postado em 29/03/2016
Ter ou ser?
Solange Amado
Algumas pessoas têm esperança, outras têm dinheiro e recursos. Eu costumava pertencer ao primeiro grupo. Fazer o que? A verdade é que não era um problema. Ser pobre não é propriamente um defeito. Só é de uma chatice infinita. A coisa boa é que a gente tem de botar a imaginação pra funcionar. Pode desejar, inventar, criar, imaginar à vontade. Pobre tem esses recursos com fartura.
E assim eu ia vivendo e aplicando com certo êxito o mecanismo das uvas verdes. Não me interessa ter. A pegada é ser. O que vale é a essência das coisas. E vai por aí. Até que um milionário construiu um tremendo palacete no enorme terreno ao lado da minha casinha, terreno esse que era quase o meu quintal. Espremido do outro lado do muro, eu ouvia e sentia o tibum dos mergulhos na piscina, o tim tim dos copos de cerveja, o cheiro bom do churrasco e a gargalhada farta dos ricos. Um frenesi de ter. E me agarrava à minha essência de ser, como um náufrago a uma tábua em alto mar.
Todos os dias, o vizinho saia com seu carro de guerra, uma Mercedes toda blindada. Eu ia pro ponto de ônibus na esquina. Partíamos pro trampo nosso de cada dia. Eu com a essência do meu buzão e ele com o ar condicionado blindado. O ter em toda a sua plenitude. Não posso me queixar, até que ele era gentil. Vez em quando oferecia carona. Eu entrava constrangido naquela catedral gótica, como se entra num templo; na sala dos espelhos do Palácio de Versailles, disfarçando o constrangimento num banquete com tantos talheres. Nunca passei além da faca e do garfo.
O termo não é bem inveja.  Na verdade, eu me sentia de fato, era esmagado pela intensidade daquele mundo maiúsculo: jardins enormes, portões gigantescos, empregados aos montões, carrões em quantidade. Tudo no superlativo. E eu sou só um brasileiro, classe média, franzino, careca, de um metro e sessenta, com uma TV tela plana, um computador muito usado e um carrinho de segunda mão pirracento, com o qual desenvolvi uma relação de amor e ódio irremediável. Compreensível que eu sentisse o meu simpático vizinho como um tubarão prestes a me engolir.
De qualquer maneira, lá ia eu vivendo aos trancos e barrancos a minha vida de terceiro mundíce no meio da fartura. Até que o primo rico era um cara boa praça.
E aí eu me casei. Não dá pra saber se esse tresloucado gesto foi consequência do rompimento da camada de ozônio, do calor excessivo que pode ter fritado o meu cérebro, ou se foi o surto da meia idade. A coisa foi repentina. Minha mulher é nova, loura, alta, bonita, um inacreditável montante de areia pro meu caminhãozinho. E se ninguém é capaz de responder à questão de “o que quer uma mulher”, não sou eu que vai poder explicar o fato de ela ter aceito o meu pedido. O fato é que aceitou, E o mundo escapou ao meu controle.
Logo o vizinho encompridou o olho. Passou a “dar uma chegadinha” na minha casa pelos motivos mais banais. Por sua vez, minha mulher cada vez mais, gastava seu tempo na mansão do lado. Papo vai, papo vem, logo o tubarão nos comeu.  À minha mulher primeiro. Depois a mim, que fechei os olhos, virei corno manso, melhorei de emprego, ia de Mercedes pro serviço e usufruía das pequenas benesses que o ter proporciona.
A bem da verdade, e depois de muitas reflexões psicanalíticas, no fundo, no fundo, conclui que, fui eu mesmo que cavei essa situação. Minha mulher era o meu “ter”, o troféu que o vizinho ia cobiçar. “Eu tenho algo que você não tem, parceiro!”. Eu a apresentei em uma bandeja.
Não. Eu só queria botar a isca no anzol e apreciar a gulodice do peixe. Era um risco, mas eu não contava que o peixe ia abocanhá-la. E a coisa ia virar aquele “imbróglio”.
Tive que matá-lo. Minha moeda de troca cada vez se bandeava mais pro lado da mansão. E a coisa ameaçava desandar. Eu não tive escolha.
A pena foi branda. Meu advogado alegou “legítima defesa da honra”. Mais três anos e saio. Sem mulheres, sem benesses, vizinhos e Mercedes. Sou só eu.
Aprendi a lição. Ter não presta MESMO.



Maria Solange Amado Ladeira                       27/11/15
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