Surge um romance
Solange Amado
Não custa tentar. Pretensão
e água benta ainda são de graça.
Ainda. E foi aí que eu ousei. Uma espécie de prurido tomou conta dos
meus neurônios, provocando coceiras intermitentes, a princípio discretas,
depois, cada vez mais intensas e urgentes: vou escrever um romance. A ideia
surgiu assim do nada. E me espantou. Já lí um bocado de imbecilidades com o
nome de romance, mas isso não me torna apta a produzir um; no máximo me dá algum
know how sobre o que não funciona nesse gênero. Na maioria dos casos, lá pela
metade da narrativa, o autor fica mais perdido do que cego em tiroteio. As
pontas mal alinhavadas da narrativa vão se soltando e o leitor se vê com as
calças na mão. E com gosto de cabo de guarda chuva na boca. Pelo sim pelo não a
gente continua lendo. Confesso que nessa altura do campeonato, perversamente,
fico mais interessada em saber como o escritor vai sair dessa saia justa, do
que propriamente de saber se no final, D. Baratinha vai se casar ou amigar
com Dom Ratão, mesmo que não exista na
história nem baratinhas nem ratões, exceto se o tema do livro for político ou
policial, nos quais existem ratos aos montes.
Mas estou me afastando das minhas péssimas intenções: as de
produzir um romance. E pasmem: um romance policial. Começo a me preparar.
Escolho de saída uma meia dúzia de personagens, que podem se multiplicar no
decorrer da narrativa, ou, ao contrário, dependendo do meu humor, posso
mata-los sem dó nem piedade no decorrer da trama. Personagens escolhidos, devo
esclarecer de cara quem é que manda no pedaço. É bom ser precavido de vez que
há sempre o perigo de o personagem impor
ao autor suas próprias ideias. Rebeldia é inadmissível quando a gente procura o
caminho das pedras em um texto. Sei bem disso, então, minha primeira
providencia é enfileirar todos os meus personagens à minha frente e fazer uma
preleção sobre como devem se comportar na minha história. Começo a distribuir
os papéis e as obrigações de cada um.
É importante a dubiedade. Nada ou ninguém pode ser muito
escrachado num romance policial ou a festa acaba antes de começar. Todo
mundo tem de ter um monte de esqueletos
no armário, hábitos escusos e um tanto perversos, sem falar no autor que, se
não tiver tendências um tanto ao quanto fora dos esquadros, é melhor desistir
da empreitada. Um passado comprometedor é imprescindível para a turma que faz
fila na minha frente. É hora de lavar a roupa suja.
E é num dia chuvoso que começo a compor o cenário e a
distribuir o script para a minha grande viagem literária. Nesse momento batem
na porta. Faço um sinal discreto para o mordomo que se apressa em atender. Bum!
Ouve-se um estampido. Minha história vai pro brejo antes de começar. O corpo do
mordomo fica estendido à minha frente. Alguém achou por bem se imiscuir na
minha história, talvez um dos personagens, gente tão pouco confiável.
E agora? Eu não pretendia mata-lo tão cedo. Sem mordomo o
script fica prejudicado e eu não sei como encarar um bando de personagens traumatizados.
Não sei como resolver o problema, o jeito é lançar mão do conselho de James
Joyce – se não podemos mudar a realidade, devemos mudar de conversa. Vou parar
por aqui e mudar o rumo da prosa.
Maria Solange Amado Ladeira -
26/11/13
www.versiprosear.blogspot.com.br
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