Sinfonia


Postado em 27/03/2016
Sinfonia
Solange Amado
Noite gelada em Viena. O Rio Danubio corria lento, levando lascas de gelo  e soltava vapores que umedeciam as pedras da ponte mal iluminada e enregelavam a sua alma. Coração pesado, o homem cambaleava penosamente pela calçada escura. Suas pernas e seus pensamentos buscavam bravamente um norte, uma saída, através daquela névoa de amargura. Sua vida, toda a sua vida um só descompasso, uma balbúrdia de sons, uma anarquia de ritmos, uma sinfonia de fracassos, uma melodia bêbada. Qual a escolha?
Fixou o olhar na água gelada e escura e pensou que uma possível solução para o beco sem saída em que se tornara sua vida seria um mergulho definitivo naquelas águas, semelhante a um mergulho no útero materno, um mergulho num tempo em que se refugiava nos braços cálidos da mãe e se protegia da vida e de um pai violento, eternamente bêbado.
Durou pouco, a mãe fez o favor de morrer, deixando-o à mercê de um déspota medíocre que se comprazia em submetê-lo aos seus caprichos; envenenou até o terreno sagrado da sua música, obrigando-o frequentemente a sair do quentinho da cama para tocar piano durante horas. Mas coisa estranha, o que poderia fazer com que se distanciasse da música, teve efeito contrário. Bela vingança. Agarrou-se ao seu som que ribombava pela sua cabeça noite e dia. Alí é que exercia sua rebeldia. Alí tinha sua única escolha.
O resto do mundo podia e estava desabando sobre a sua cabeça. Há muito sabia ser uma ruína ambulante. Um fígado cirrótico, esperanças cirróticas, pulmões comprometidos,e um belo par de chifres da única mulher por quem ousou se apaixonar. Foi o bastante para que desistisse definitivamente do amor e se casasse com sua música para todo o sempre. E ainda havia aquela mania irritante de todos falarem cada vez mais baixo com ele, até emudecerem de vez; não que tivesse alguma coisa importante a comunicar aos que o rodeavam. Cada vez mais sua irritação aumentava com os seres humanos, cada vez se isolava mais dentro do som que habitava seus ouvidos e do silencio de fora, e cada vez mais era possuído por essa sinfonia em gestação: a nona. Dedicou-a à “Alegria”. Nem sabia por que cargas d’água. Talvez por vingança. Era a sua resposta para o mundo. Ia presentear o mundo com a sua única alegria. A única alegria com a qual podia contar, a única que conhecia: a alegria do seu som, aquele som que, ao desaparecer do mundo exterior passou a habitá-lo noite e dia.
Estava disposto a ultrapassar barreiras com o seu canto de Alegria. E fez de sua nona Sinfonia um marco na composição de sua época. Fez uma revolução nos instrumentos da orquestra, dobrou o número de trompas, de violinos, incluiu tambores, flautins e contrafagote, mais, fez algo ainda mais inédito: uniu a voz humana à orquestra e fez reboar pelo Grande Teatro de Viena, os versos de Schiller.
Iniciou seu primeiro movimento allegro ma non troppo, un poco maestoso, com violinos e violoncelos em pianíssimo, passando a um crescendo e culminando a um fortíssimo, levando o público ao delírio; o scherzo molto vivace lembrando um gracioso movimento de dança; o adágio e finalmente o allegro assai, com uma melodia vigorosa e impecável.
Sentado ao lado do maestro, no limite de suas forças, ele contemplava a orquestra que arrancava de seus instrumentos o som mais puro da sua Sinfonia número 9 em Ré Menor – Opus 125 – “An Die Freude”, que pode ser traduzido como “Pela Dor à Alegria”. Seus ouvidos não puderam captar nenhum compasso, mas embora para ele a orquestra não emitisse qualquer melodia, podia transformar essa orquestra silenciosa numa explosão de sons cujas marcas já habitavam seu cérebro e as mais ternas lembranças do seu coração.
De costas para a platéia, não conseguiu perceber a explosão de aplausos, o delírio dos expectadores, que consagrava sua música, até que a soprano delicadamente pegou o seu braço  e fez com que ele se virasse de frente para o público. Foi aí que ele viu.
Ludwig Van Beethoven então, lembrou-se daquela noite fria na ponte sobre o Rio Danubio, grato por não terem, a surdez e o desespero, vencido o talento de um gênio: “Não consegui partir desse mundo antes de ter-lhe dado tudo o que germinara em mim”.
Foi a última Sinfonia Completa do mestre.  Da dor à alegria. O caminho da esperança.


Maria Solange Amado Ladeira     16/04/13

www.versiprosear.blogspot.com.br

Nenhum comentário:

Postar um comentário