Postado em 25/03/2016
Serendipidade
Solange Amado
Não tenho culpa, até que eu me esforço. Mas esse é sem
dúvida, um caso de serendipidade. Acontece frequentemente comigo. Que raio de
coisa é essa, vocês vão saber logo se forem juntando os miolinhos de pão que
vou jogar pelo caminho.
É sempre assim, a intenção primordial era produzir uma
história para crianças. Uma história nova, sem contaminação, com toda a
metodologia. Queimei as pestanas nessa coisa de organizar a bagunça que habita
originalmente a minha cachola. Primeiro a gente tem de elencar uma série de palavras
para a nossa pretendida historinha. Faço uma chamada das que eu considero top
de linha e boto elas em fila pra começar a experiência. Coisa difícil. Minhas
palavras sofrem de TDAH- transtorno de déficit de atenção e hiperatividade. Não
me obedecem e não são razoáveis. De cara já fico em desvantagem. Depois, pensar
num script, um título chamativo, etc. mas por mais que eu tente, minha
organização vai pro brejo. E não admira. Nunca fui criança. Já nasci madura,
quase caindo do galho. E só não caí de vez, porque fui sensata o suficiente pra
fingir que acreditava no caô das história infantis, ou melhor, naquelas
histórias que os adultos costumam inventar para crianças. Pelo menos, na era
paleológica, de onde venho, era preciso suar muito pra acreditar que um lobo
mau podia ser tão retardado, a ponto de deixar pra trás um pitéu que nem o
chapeuzinho vermelho pra comer a vovozinha e pior ainda, o chapeuzinho devia
ser muito míope mesmo pra confundir um lobo mau com indigestão, e sua doce
vovozinha E o que deu na cabeça do lobo pra pensar que seu bafo podia derrubar
a casa dos três porquinhos? Se bem que, concedo, bafo de cachaça me derruba
fácil. Vai ver, os três porquinhos compraram sua casa no programa “Minha casa,
minha vida”, que aí ela cairia sozinha, de qualquer maneira sem precisar de
bafo de lobo mau nenhum. Pior ainda é o caso da “Bela Adormecida”. Na minha
santa ingenuidade infantil, eu ficava imaginando a Bela Adormecida dormindo,
dormindo e brotando, criando raízes, cabelos brancos, faces enrugadas. Lábios
caquentos, antes que um príncipe velhote sacasse que tinha de sapecar um beijo
naqueles lábios murchos e acordá-la. Como? Se ninguém dava uma dica pra ele. Já
nem falo no caso da Branca de Neve e os sete anões”. Uma pornochanchada
infantil.
Então, desisto. Só funciono mesmo é no meio da anarquia. Os
caminhos convencionais não dão pra mim, então vale improvisar. Quem sabe uma
versão moderna da dona Baratinha? Quem
não tem cão caça com gato. Vamos lá mudar o rumo da prosa: Era uma vez uma
barata. Não era pobre, habitava um palácio. Nunca pegou no pesado,e era casada
com um cara de prestígio, o Dr. Barato.
Só que em tempos de inflação, aconteceu
o inevitável, o Barato sumiu. D. Barata se viu em mãos de calango, sozinha,
separada, com todo mundo olhando de banda pra ela, que apesar de toda a riqueza
e de andar com um bando de guarda costas, a vizinhança não a olhava com bons
olhos. Um dia, enquanto andava de bicicleta, um de seus seguranças viu um
objeto brilhante no chão. Cheio de cautela (podia ser um artefato prestes a
explodir) recolheu a peça: era um dólar furado. Com o dólar na estratosfera, D.
Baratinha sentiu que poderia finalmente atrair um novo marido mais caro. Logo
apareceu um candidato: um ratão orelhudo (em volta do seu palácio tinha uma
população numerosa de ratos). O nome não era João, era José, mas não importava,
eram todos da mesma família, família de antiga linhagem, conhecida nas
vizinhanças. Não deu outra, o namoro vingou e começaram os preparativos para o
casamento. Os urubus foram convocados pra distribuir os convites pra rataria.
Voaram em grandes bandos negros anunciando a boa nova. Dom Ratão, só fez uma
exigência: nada de feijoada! Não queria correr o perigo de ser fritado na
panela de feijão como na história original. Um churrasco na Granja do Torto,
adjacente ao palácio da D. Barata era o bastante. Milhares de macacos, os
únicos animais naquelas paragens que não tinham o rabo preso, foram convocados
em bandos pra preparar os quitutes.
Acostumados a ficarem pendurados pelos rabos na floresta, a macacada abanava o fogo com suas fartas
caudas, cozinhando, decorando o ambiente, resolvidos a fazer tudo o que Dom
Ratão mandasse, sempre se movendo nervosamente pra todo lado a fim de dar conta
do recado. Um helicóptero chegou trazendo caviar russo, lagosta argentina e a
macacada lá, descarregando as mercadorias...
Desculpem, mas o fim da história eu ainda não sei, que o
banquete ainda está pela metade. Não consegui nenhum convite para o evento. Na
verdade, eu pretendia ir a uma outra festa, em que D. Ratão cai na panela de
feijão e se queima todo. É essa história
que eu estava caçando. De repente, me deparei com outra. Houve um desvio no meio
do caminho. Isso é serendipidade. Que é um nome feio, mas saindo de um dólar
furado. O que é que vocês pretendiam?
Maria Solange Amado Ladeira 29/09/15
www.versiprosear.blogspot.com.br
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