Genialidade


Postado em 06/03/2016
Genialidade
Solange Amado
É noite. Não chove, mas o vento quase carrega a minha janela. De repente, sinto-me inspirada. Se é que posso chamar assim, a esse prurido que me acomete. Pego papel e caneta. Atenção,neurônios! Vai ser dada a largada! Posiciono as palavras. Toco o apito. Nada acontece, ou melhor, acontece sim, eu queimo a largada. Rebate falso. Volto à posição inicial. Nova largada. Queimo de novo. Não desisto. Tento mudar as posições. Nada acontece. Amanhã. Amanhã eu faço. O calor derreteu a calota polar do meu cérebro. Melhor dormir. Me estendo na cama. Um lençol de calor me abraça e eu durmo.
Sonho que estou perdida em um país que não conheço. Não conheço a língua, não conheço o lugar, não conheço as pessoas, não sei se são humanas e nem sei de que gênero ou espécie eu sou, se tenho quatro patas e um chifre. Não me comunico com palavras, só grunhidos. Perdi as palavras. Esquisitice é pouco para o que eu sinto. Total despersonalização. Será que tenho quatro patas de fato? Meu caminhar é canhestro. Mas o pior são as palavras que perdi. Tento encontrá-las, mas elas não fazem sentido para mim. Fico coaxando e grunhindo. E não consigo me comunicar com ninguém. Escuro. É um mundo escuro. Meu Deus! Cadê a luz no fim do túnel? E acordo.
Um enxame de angústia me beija a boca do estômago. Estou coberta de suor e alívio. Passo as mãos pelo rosto. Não tenho um olho só. Não sou um ET. Só sei que tenho um texto pronto, só falta um pouco de molho. O nó é que o molho é que faz a diferença. Costuma ser chamado de inspiração. Recupero as palavras, mas não o molho. A sensação de estranheza persiste. E não descubro de onde vem. Vai ver é de onde eu menos espero. Tenho nas mãos uma conspiração de palavras, mas falta a inspiração. E de onde vem ela? Tem um período certo de gestação? O aborto acontece com muita frequência? Fico preocupada.
É que, na verdade, eu estava na maior confiança. Foi Thomas Edison que me garantiu que a coisa é muito mais fácil do que a gente pensa. Desde então, fiquei me considerando praticamente um gênio. Um dia ele soltou essa pérola: “A genialidade é 1%  inspiração e 99% transpiração”. Não sei se ele chegou a essa conclusão quando esfregava  lá a sua lâmpada, mas o fato é que fiquei na maior empolgação. Mole pra nós. Nesse verão, já atingi um quantum de transpiração que bateria qualquer recorde olímpico. Então, 99% já tá assegurado, só falta 1%. Coisa pouca. Mas essa coisa de inspiração é incolor, inodora e insípida. Nem é palpável. Quando ela vai chegando, a gente só imagina um cheiro, uma cor. Mas ela é tão matreira que certamente vai lhe dar uma rasteira se você pensar em algo preto no branco. Na verdade, eu  gostaria de algo mais agressivo, mais marcante, mais quente. Uma inspiração dramática. Vermelho sangue. Nada de neutralidade. Algo que chega com força e mostra a que veio. Nada de timidez. Do contrário, vai sumir no meio de tanta transpiração.
É isso. O Sr. Thomas Edison bagunçou o meu coreto. Quando eu achava que tava tudo dominado percebo que o David da inspiração tem de enfrentar o Golias da transpiração e... vencer. É só um pingo no meio do oceano de suor que eu destilo. Mas, concedo, é o que faz toda a diferença.  Se arte é ruptura, a inspiração é o corte no lugar certo. O que muda o curso da mesmice.
Nem sempre a nossa faca está suficientemente amolada pra produzir um corte eficiente. Se não estiver. Se eu não encontrar o 1% suficiente pra dar conta da avalanche dos 99%. Desisto. Vou comprar o meu texto em alguma loja de 1 e 99.






Maria Solange Amado Ladeira                   03/11/15

Nenhum comentário:

Postar um comentário