Postado em 06/03/2016
Mala e cuia, lá vamos nós!
Mala e cuia, lá vamos nós!
Solange Amado
Venho carregando malas pela vida afora. Malas cheias, malas
pesadas, malas grandes, miúdas, magrinhas, gordas. De todas, as malas sem alça
são as mais difíceis de carregar. Não se sabe como pegá-las. E é preciso se
haver com esse artefato incômodo. É preciso levá-las de um lado pra outro.
Afinal, é meu recheio que está ali, dentro delas. As malas constituem um mal
necessário. O mal de existir. Ninguém existe sem bagagem. A alfândega da minha
vida já tentou inúmeras vezes escanear as minhas malas, separar o joio do trigo,
esvaziá-las de sólidos, líquidos e gasosos ameaçadores para o meu equilíbrio
emocional, conteúdos bregas e envergonhantes, que poderiam denunciar quem eu
sou debaixo dessa minha máscara de existir.
Uma roupa suja de carências e fraquezas que, definitivamente,
deve permanecer no fundo do baú, teima em compor a parafernália incômoda que me
acompanha nessa trajetória mundana. Tem esqueletos guardadinhos em compartimentos
lacrados, que nenhum raio X descobre. E vamos que algum fiscal indecoroso
resolve libertar do passado alguma ossada de estimação do seu cuidadoso
esconderijo? Não teria graça nenhuma escancarar minhas entranhas para o mundo. Seria
como, num ato de puro vandalismo, esvaziar um sofá do seu recheio. Não seria
mais um sofá.
E não é má ideia. Explico. Em princípio, simpatizo com os
ingleses – nada de malemolência. Ou é preto ou é branco, tirante o sucesso dos
“Cinquenta tons de cinza”, que até britânicos têm direito a uma escorregada no
quiabo de vez em quando. De qualquer maneira, foi um inglês, mais precisamente
o primeiro ministro Harold Mcmillan, quem disse: “o passado deveria ser um
trampolim para o futuro, mas muita gente faz dele um sofá”. Mcmillan me ganhou
com essa frase. Diariamente, por profissão, ou por compulsão, sei lá eu, ouço
pessoas cochilando numa modorra, num à vontade de fazer gosto no sofá do seu
passado. Confesso que isso, às vezes, me desperta uma indignação
mcmilliana,diria você, mas quem não gosta de apoiar seus ossos cansados em
alguma superfície fofinha e macia? O problema é quando o sofá vai ficando
mambembe, e como colchão velho, vai adquirindo protuberâncias indesejáveis, aí
a gente toma consciência de que o passado é uma mala sem alça. Impossível jogar
fora. É preciso carregá-la e não sentar em cima dela. Pior. É preciso fazer
dela um trampolim. Vocês me perguntam: como chegar à Ilha de Caras, à Ilha da
Fantasia, como atingir o impossible dream, como ir pra Pasárgada arrastando meu
passado mala sem alça? Não sei. Perguntem ao Mcmillan. Só sei que a única forma
de ir pra frente e podem chamar esse “frente” de futuro, é de mala e cuia.
Apesar das tentativas, por vezes inglórias, de me livrar de
alguns conteúdos incômodos na minha bagagem, confesso que venho colhendo pelo
caminho mais bugigangas, inócuas ou não, não importa. Se querem saber, são
essas bugigangas que adquiri ao longo da vida, que me traduzem, que me dão
sentido, que me mostram que meu conteúdo e eu nos tornamos um todo inseparável.
É essa mala sem alça que sou. Tormento e prazer. Delícia e dor. Vou me movendo
como posso. Jogo fora o sofá perebento. Não preciso olhar pra trás, já
incorporei o passado, o meu bodocó. O futuro depende dele. Mala e cuia. Prá
onde? E eu sei lá?
Maria Solange Amado Ladeira – 30/10/12
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