E se...


Postado em 09/03/2016
E se...
Solange Amado

Tenho sentido muita saudade do que eu poderia ser. O que, exatamente isto quer dizer, eu não sei. Alguém já disse que um pintor não tem resposta para seus próprios quadros. Ninguém sabe a respeito deles, senão os próprios quadros. E eles precisam ter algum mistério para funcionar. Não sou um quadro, mas o que eu poderia ser não passa de um quadro misterioso perdido num passado inexistente. Não sei nada a respeito desse eu. E talvez seja exatamente por isso que me faz falta e me deixa assim meio troncha de tanta ausência.
O certo é que nesse quadro eu não faço economia. Quando em uma música eu fico tentando colocar a minha vozinha de meia tigela, penso que eu poderia ter sido uma Montserrat Caballé, ou uma Mercedes Sosa. Nada miudinho, tudo em ão. Um mulherão, um vozeirão, um talentosão, um bundão e por que não, um peitão que alí dentro tem de repousar de seis a oito oitavas. É isso. Se tem caixa, tem de encher de talento. Eu posso até ter caixa, mas tá lento pra caramba!
E se eu tivesse sido uma amazona? (Taí mais um desejo secreto). A filha de uma amiga é uma amazona. Tem um marido e um cavalo chamado Baltasar. Nos fins de semana, ela e o Baltasar formam um só e garboso corpo, saltando obstáculos e arrebanhando medalhas, enquanto o marido pula cercas mais adiante e nunca levou uma medalha para casa. Mas honra seja feita, ele sustenta o Baltasar a pão de ló, num haras caríssimo. É o seu salvo conduto. Enquanto houver o Baltasar, haverá um casamento harmonioso, perfeito. Isso são favas contadas. Ninguém ignora. Nem o Baltasar.
Fico pensando se eu tivesse um Baltasar, eu poderia saltar todos os obstáculos que emperraram e emperram a minha vida. O problema é só que alguém teria de bancar o Baltasar. Isso eu não tenho. Nunca tive. Um baita azar!
Na adolescência eu queria ser famosa. Não aquela fama superlativa de arrebentar na mídia ou coisas que tais, que a gente nem tinha internet e nem desconfiava do mundo digital. Eu queria ser famosa no meu mundinho de colégio. Explico: na sala de aula sempre fui coluna do meio. Preferia mil vezes me perder nas páginas de um livro de aventuras, um livro policial, biografias, e até romances melosos. Eu viajava horrores pelo meu curdistão bravio, atravessando o deserto na garupa do meu príncipe árabe. Escolha muito mais sensata do que encarar matemática e estatística, física e química e outras milongas, exceção feita a matérias como história, geografia, redação, que também me davam a oportunidade de embarcar na maionese dos sonhos.
Todo mês, a freira subia numa escadinha de três degraus e diante de todo o colégio, dizia os nomes das minhas três colegas que se revesavam no podium. Monotonamente, eram sempre aquelas três lazarentas. Um dia me cansei do anonimato. Resolvi que meu nome também ia aparecer nas luzes da ribalta. Cheguei em casa, fechei minha preciosa leitura dentro de um armário e resolvi enfrentar o touro à unha. Nada de leituras alienantes, nada de festinhas, de cinemas, de reuniões, etc. Mergulhei nos números, nas fórmulas. Tortura auto inflingida. Paguei todos os meus pecados.
E vai daí que o fim do mês chegou. Toda a escola reunida, a freira sobe a escadinha de três degraus. Meu coração martela dentro do peito. E... finalmente, saí do anonimato, arrebanhei a medalha de bronze. Aplausos, umas batidinhas nas costas, professores meio descrentes com a minha repentina escalada para o sucesso.
O beijo da fama durou exatamente cinco minutos e teve  gosto de cuspe. De volta pra casa, tirei meus livros do armário e voltei ao anonimato. Foi a única vez na vida que a fama me bafejou.
Não perdi a viagem ou a vida. Só tomei a estrada errada, e se Brecht me permite, é esta estrada que me levou até aqui. Não me arrependi de ter libertado as minhas palavras do armário. Elas ficaram tão gratas que não se desgrudam mais de mim, me acariciam e me beijam. E posso garantir: não têm gosto de cuspe.





Maria Solange Amado Ladeira                                       17/11/2015

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