Postado em 08/03/2016
O tempo
Solange Amado
Quase todo mundo conhece a história. Mas posso refrescar a
memória de alguns: era uma vez um cara que tinha o péssimo hábito de surrupiar
coisas. Uma vez, ao passar por uma fazenda, viu uns leitõezinhos muito
apetitosos, olhou para um lado, olhou para o outro, não viu ninguém. Pegou um
leitãozinho, botou nas costas e se dirigiu à toda para a estrada. O bicho se
retorcia e guinchava feito louco, mas o homem segurava forte, enquanto o bicho
dava safanões. Até que chegaram à estrada. De repente, deram de cara com o
fazendeiro com uma baita espingarda nas mãos. O homem soltava fogo pelas
ventas. E manejava a carabina aos berros: “Ah! Então é o senhor que anda
roubando os meus porcos!” Apavorado, nosso amigo gaguejou: “Porco? Que porco?
Meu Deus! Tire esse bicho daqui! Tire esse bicho daqui!!”
Não sei vocês, mas nesse imbróglio político brasileiro, o que
eu mais ouço é isso: “sítio? Que sítio? Tire esse bicho daqui!” “Conta? Que
conta? Tira esse bicho daí!” E essa nau sem rumo vai navegando aos trambolhões
com o porquinho sem dono estrebuchando e berrando tão alto que dá pra ouvir do
Oiapoque ao Chuí.
No meio disso tudo, nós brasileiros, vamos tentando viver o
nosso kairós, ou seja, viver prazerosamente o nosso tempo. Sem contas no
exterior, e sem porquinhos. E sem culpa, porque não nos resta outra opção.
E explico, podem me corrigir se estiver enganada. Os gregos
tinham uma quantidade incomensurável de deuses. Chronós e Kairós eram os deuses
do tempo, filhos de Zeus. E Kairós era o caçulinha, e talvez tenha vindo para
suavizar a inexorabilidade de Chronós, deus do tempo quantificado, aquele que
se pode medir, que é ordenado pelo relógio, aquele que devagar vai nos
levando ao cemitério, contrariados, à força,
mesmo que a gente resista e estrebuche
que nem o porquinho da história. Chronós é um bocado severo. Kairós, ao
contrário, não se ocupa de passado ou futuro, para ele existe o instante
presente. Esse presente do agora, que nos permite neutralizar o caos e abraçar
a felicidade. Parece simples.
Aí, voltamos ao porquinho guinchando e se contorcendo. Como
ignorá-lo, como neutralizá-lo e viver o nosso kairós em paz? Enquanto é tempo.
Não que eu pense em me sentar numa nuvem tocando harpa,
enquanto o sol queima, o transito dá nó, o garotinho passa com os olhos de fome
e o nariz escorrendo. Perdeu! Perdeu! Eu fico sem a carteira e sem a harpa.
Se estou inexoravelmente atada a Chronós, que vai me
carregando sem dó nem piedade com o plissado e as dores da velhice, para o beco
sem saída da morte, o que eu quero aprender na verdade, se não posso parar essa
marcha, é a fazer pequenas pausas pelo caminho, quando o pasto for verdejante,
quando a primavera chegar, quando ouvir uma canção de Piaf, uma palavra amiga,
quando os dedos do amor tocarem meu coração e ele se puser a galope. Por uns
poucos momentos, que sei eu? Posso driblar Chronós e descansar nos braços
pacificadores de seu irmão Kairós, que eu mereço.
Só tem um problema. E aí faço uma alerta a todos os que
querem usufruir desse oásis, sempre que Chronós der uma cochilada. É preciso
estar muito atento. Diz a lenda que Kairós é muito rápido, anda nu e tem asas
nos ombros e nos calcanhares, e como em certa época o Ronaldo Fenômeno, tem só
um tufo de cabelo na testa. Só se pode agarrá-lo segurando esse topete. Daí que
é preciso estar muito ligado. Deu bobeira, perdeu! Não só a bolsa, o carro, os
documentos. Perdeu o momento, a oportunidade.
E essa eu não quero perder. Tenho um CD novo, um pedaço de
chocolate, uma piscina, um dedo de prosa com um amigo e esse mundão de palavras
pra brincar.
Perceberam? Apesar do barulho, dos guinchos, desse país que é
um enguiço, das maldades de Chronós, sou esperta. Consegui agarrar o topete de
Kairós. Agora.
Então, nada de bobeira. Ele pode estar passando aí nesse momento!
Maria Solange Amado Ladeira 08/03/2016
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