Postado em 29/02/2016
Pirada ou carente
Solange Amado
“Palavra puxa palavra, uma ideia traz a outra e assim se faz
um livro, um governo, ou uma revolução” Essa era a minha esperança. Aliás, não
sei quem disse isso, mas tem um forte cheiro de Machado de Assis. Ele fazia
livros. Eu, ao invés, nunca fiz um. Um governo, nem pensar, sempre fui assim
meio desgovernada, e quanto a ser revolucionária, não tenho perfil. Mas,
justiça seja feita, ando puxando ideias e palavras com a fidelidade de um boi
de canga subindo o morro, um tanto gemebundo. E acho que todo esse esforço anda
se refletindo na minha saúde. Saude mental, a bem da verdade. Pelo menos é o
que desconfio, e vocês, mais sábios do que eu, vão ter certeza depois que eu
revelar as coisas estranhas que estão rolando. Aviso que são de fôro íntimo. Lá
nos confins do meu cérebro sobrecarregado pelo peso das palavras, esse carro de
boi anda ameaçando descarrilar. Palavras se soltam com facilidade e é preciso
amarrá-las com cuidado, ou vão se perdendo pelo caminho. Isso me estressa.
Muito bem, vou dividir a minha preocupação com vocês, mesmo
que me sinta uma lady Godiva tupininquim, realizando um strip tease psicológico
bem aqui no meio da folha.
É que tenho uma séria desconfiança de que as coisas estão me
perseguindo. Pronto. Falei. Não propriamente me perseguindo, se é que me
entendem, mas tirando sarro de mim.
Começou em uma tarde dessas, que parecia normal. A descarga
do meu banheiro disparou. Apesar dos meus esforços insanos, ela se recusou a
parar. Desliguei a água e chamei um bombeiro da firma do meu amigo e vizinho. O
sujeito chegou umas horas depois – alto, moreno, forte, bonito. Reparei no
detalhe, mas não me fixei nele. Já tinha problema suficiente. Marchamos para o
banheiro. Ligamos a água e a descarga funcionou maravilhosamente bem. Mesmo
assim ele me deu um voto de confiança, desmontou a geringonça. Não havia nada
de errado. Mal o camarada deu um passo para fora do edifício, resolvi testar a
coisa e... ploft! Era só água jorrando. Tornei a chamar o bonitão do pedaço.
Mesmissimo vexame. Dessa vez o cara me olhou atravessado. Lá pela terceira vez,
nosso herói procurou o patrão, cheio de desconfiança: “Doutor, acho que aquela
coroa é meio carente, só pode ser isso”. Engoli o insulto e chamei outro
bombeiro, por precaução, dessa vez um velhinho quase surdo. O efeito foi o
mesmo. A coisa continua tirando sarro de mim. Seu funcionamento é absolutamente
distímico. Podem me chamar de biruta, mas ela só sai do sério comigo.
E se estão pensando que parou por aí, nadica de nada. Semana
passada foi a vez do meu computador. Fiquei três dias tentando abrir meu email.
Nenhum êxito. Ele deu de desenterrar um email que eu fiz quando Cabral aportou
na Ilha de Vera Cruz, e do qual eu nem sei mais a senha. Chamei o não tão lindo
técnico. Ele me mandou abrir o email e... adivinhem? Mamão com açúcar. Entrou
que nem uma luva. Não tentei chama-lo outra vez pra não botar a minha
compostura em jogo. Chamei parentes e amigos que não se sentem tão ameaçados
por “essa coroa carente”. A reação do aparelho foi a mesma. De qualquer
maneira, consegui uma trégua com a geringonça eletrônica e consigo chegar ao
meu objetivo por meios não muito ortodoxos, mas a pulga atrás da orelha
continua.
Agora, vamos ao âmago da questão. Minha relação com as coisas
sempre foi a mais pacífica possível. Eu nunca as provoco e elas nunca abrem
fogo contra mim. Ao contrário, minha relação com as palavras foi sempre algo
conturbado. Coisa assim de paixão histérica. A gente se desentende, roda a
baiana, casa, separa, casa, e assim vamos indo. Nunca discutimos a relação. Seria
inútil. Não há o que discutir. Eu posso não me entender com elas, por vezes,
mas há um profundo respeito entre nós. Eu as admiro e elas me devolvem essa
admiração com uma obediência contrariada, meio mambembe. Como qualquer
casamento.
O negócio é que ando desconfiada da infidelidade delas. Se as
coisas podem aprontar comigo, o que não farão as palavras, muito mais íntimas?
Reparem que nesse mesmo texto, elas me traíram. Como uma boa
aprendiz do Neruda, elaborei uma lista de palavras, ordenei uma formação e na
frente de vocês elas afinaram legal. Cadê que me obedeceram? Elas andam cada
vez mais saindo do meu controle.
Mas podem ter certeza. Papo firme. Se elas saltam a cerca por me acharem um tanto pirada.
Não vou discutir, mas se me chamarem de coroa carente. Aí eu vou apelar!
Maria Solange Amado Ladeira
- 28/10/14
www.versiprosear.blogspot.com.br
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