Papéis


Postado em 29/02/2016
Papéis
Solange Amado.

Abro os olhos para o primeiro dia útil do novo ano, já que os três anteriores foram inúteis. Ligo a TV para ver qual é o novo itinerário da lama que já atingiu o pai, o filho e agora o Espírito Santo. Trindade completa. Ninguém escapa. A onda de detritos que assola o país aumentou um pouco mais enquanto a população se deslocava como baratas tontas, de um lado pra outro, pra usufruir do trânsito engarrafado, das praias sujas, da poluição, na falsa sensação de estar gozando do seu “merecido descanso anual”. Nada de novo no front. A chuva, a lama, os acidentes, o calor, a fome, a sede, o xixi na beira da estrada, até atingir o nirvana do mar pra lavar a sujeira que o noticiário vomita. Só um banho de baldinho que o mar não está pra peixe. Tem tubarão e água viva. O negócio é molhar o pé, tomar uma cerveja morna e empreender a jornada de volta que ninguém é de ferro. Feliz Ano Novo pra todo mundo!
Pego o controle remoto e começo a zapear os canais. 50% se dedicam à mesmice dessa via crucis a que já me referi. Os outros 50% monitoram a mesmice da lama que já atingiu níveis tão espantosos que ameaça submergir até cidadãos de bem como eu, que estou acordando agora e conheço propina só no dicionário.
Continuo zapeando. Paro num canal desses universitários. Uma mocinha, cheia de tatuagens e entusiasmo, padrão hippie global, entrevista o que ela chama de um “morador de rua”. O sujeito não tem os dentes da frente, veste um paletó surrado e sujo e olha a repórter gostosinha com um olhar opaco como se ela fosse a vitrine de alguma joalheria da Quinta Avenida. A moça alisa o cabelo, posiciona o microfone e dá o chute inicial: “ o senhor, como um morador de rua”... logo é interrompida pelo entrevistado: “não, moça. Eu não moro na rua. Ninguém mora na rua, senão o carro pega.” Fecho aspas e me lembro de um amigo gozador, que tinha uma filosofia: “há somente dois papéis imprescindíveis para o ser humano: o papel moeda e o papel higiênico, o resto é papel de bobo.”
Pois é. Fico matutando: do primeiro papel eu já desisti. Somos incompatíveis. Já tentei seduzi-lo, já me insinuei inúmeras vezes, no tempo em que conjugava esses verbos. Mas esse é um caso clássico de amor não correspondido. Nossa união já estava fadada ao insucesso.
Do segundo papel, o higiênico, sempre faço um estoque considerável. Com tanta merda solta nesse país, nunca se sabe. Mas o que eu  exerço mesmo na maior competência é o papel de boba. Eu e a repórter.
Bom, mas não tenho tempo pra considerações filosóficas nessa manhã. Tenho um médico marcado e estou atrasada. Tomo um banho rápido. Saio correndo, chego atrasada e sem ar. O elevador se recusa a abrir a porta no andar do médico. Opa! Consigo  chegar em cima da hora, só pra saber que errei o dia. Fico com cara de palhaço. Não há remédio. O jeito é empreender a viagem de volta. Tomo um táxi com um piloto kamikaze. O cara tira fininhos nos outros carros, no meio fio e serpenteia no transito para o meu desespero. Me pergunto se ele estará bêbado ou se não enxerga direito. É quando o cara me pergunta: “A senhora vê algo errado na minha cara?” “Como assim?” Não entendi bem. “É que eu tenho um olho de vidro!”. Meu coração dá um salto. Minhas suspeitas não eram em vão. Não bastou. Meu herói continuou: “Mas não se preocupe, eu dirijo desde os 14 anos. Não me prejudica. Ontem mesmo, fui revalidar a minha carteira de motorista. A médica não queria me liberar”... Interrompo: “por causa do olho de vidro?” “Não senhora, ela  me disse que eu já estou com catarata”... Não acabou a frase, fiquei por ali mesmo. Meu dia acabou no meio de uma rua que eu nem conheço. Com cara de tacho.
Não sei vocês. Mas eu estou ficando boa nesse negócio  de papel de boba. Pode não ser imprescindível, mas está despontando como um tendência de moda para os próximos anos. Esse modelito é fashion. Veio pra ficar, é o jeans brasileiro. É só esperar pra ver.




Maria Solange Amado Ladeira                                                                   02/02/16

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