Palavras miúdas


Postado em 26/02/2016
Palavras miúdas
Solange Amado
Minha faxineira, a mesma que não sabe ler nem escrever, a mesma que vai votar no Lula pra prefeito de Ribeirão das Neves, chega de uma consulta médica anunciando que o médico pediu um “inzame do meu bindome”. “Ah! Sei! Ele vai fazer em você um ultrassom abdominal”, digo, do alto da minha sapiência. “Não” foi a resposta. “Não é esta a palavra. A palavra é mais miudinha”. Eu tinha me esquecido disso. Que palavras podem ser miúdas. “Você deve saber qual é. Conhece as palavras”. Meus brios são postos à prova, mas o que ela não sabe é que não atino com essa miudeza das palavras, elas me engrolam, me engolfam o tempo todo, e quando tento reagir, elas me dão uma rasteira.
Mas minha honra foi conspurcada e não posso confessar a minha incompetência mostrando que em se tratando de palavras, eu só faço “ispaiá elas” no papel, na maioria das vezes em total indisciplina que não tenho vocação pra bedel.
Então, tá certo. Não é novidade, sei que as palavras são assim: gordas, magras, grandes, pequenas, feias, bonitas. E principalmente rebeldes, nunca se comportam bem e mudam de humor com extrema frequência. Palavras são cheias de altos e baixos. O que significa que conheço algumas palavras miudinhas, mas essa palavra miudinha em especial, atrelada a algum exame abdominal já me colocou a nocaute. As únicas palavras que conheço dessa ordem, não são palavrinhas, são palavrões: peritonioscopia, colonoscopia, que diga-se de passagem, são feias de doer, mais ainda quando é você a pobre vítima protagonista desse procedimento.  
Mas não posso desanimar e continuo a minha pesquisa. Gentil é uma palavra miúda. Lembra amor.Existem é claro, palavras gentis para falar de amor. Mas será que existem palavras gentis pra falar de todas as espécies de amor? Tô falando de um amor fracassado, por exemplo, de um amor desgovernado, de um amor impossível, de um amor burocrático. Em todo caso, todos os amores são gentis, mesmo os que machucam. E todos os amores machucam, porque são malucos, e se maluco não é uma palavra gentil, pelo menos é simpática. De qualquer maneira, gentil, essa palavra miudinha não cabe em uma videolaparoscopia. E depois, amor, mesmo sendo miúdo, não se refere a um órgão incrustrado no abdomem. Não que eu saiba. A menos que tenha migrado do peito e esteja escondido bem fundo na cavidade abdominal. Não posso contar com ele pra essa miudeza em particular.
Taí. Cavidade é uma palavra profunda, mas mal iluminada. E não é miúda. Não serve. Por sua vez, dor parece ser uma palavra miúda, mas é também nômade, não se esconde em nenhuma cavidade em especial. É escancarada, vai mudando de lugar conforme der na telha. Nunca é misteriosa e não se faz de rogada. Quando a dor doi, não é nada miúda. Não serve.
Que tal som? Essa é miudinha. Mas existem sons cheios, fortes. E são inconstantes. Ontem mesmo, peguei pesado e acabei arrebentando a corda ré do violão. Entre um som e outro, acabei ficando sem nenhum. Mas mesmo quando arrebentam, palavras são musicais e teimam em se juntar, se embolar e umas sobre as outras, constroem poemas como edifícios com curvas graciosas ou jardins musicais cuja sonoridade vai penetrando nossas cavidades miudinhas e se ajeitando até tomar conta dos nossos sentidos.
Vejam só, repitam baixinho BIN...DOME. Não parece o badalar do sino de alguma igreja romana? Pra que botar um estetoscópio em tamanha sonoridade? Só me resta ir em frente, que palavra não tem patente. Mas rima. E rima é uma palavra miudinha.




Maria Solange Amado Ladeira                       26/08/14


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