Palavras e palavras



Postado em 26/02/2016
Palavras e palavras
Solange Amado


Arribei uns dias do meu ninho. Busquei a natureza. Cheiro de café no bule e estrume de vaca, galos cantando em diversos diapasões, galinhas ciscando, grilos rompendo o silencio angustiante de noites sem internet; TV chuviscando, frio comendo os ossos enquanto o sereno escorre num choro silencioso pelo mato em volta da casa.
Bicho urbano que sou, levei na mala, vinhos, capotes, pantufas, livros, violão, moda de viola e um estoque de palavras na esperança de aquecer a solidão e espantar o pesado silencio das noites na roça. Pensava poder me defender da estranheza de ter de driblar o barulho de dentro, com uma barricada de palavras. Mas sem a porteira fechada do ruído externo, elas se esparramam como um estouro da boiada e surge a angustia, a inabilidade, a incompetência de eu estar simplesmente comigo. Sem a peneira misericordiosa do blá blá blá virtual, sem o real da cidade pra amaciar o encontro e dourar a pílula, sem essa rede protetora do transito caótico, esse encontro não passa de um encontrão de mim comigo.
Pois é. Com toda essa prosopopeia eu só tento engolir o fato de que mesmo um estoque gigantesco de palavras nada pode contra o frio da falta da inspiração. Sem a piração urbana, a folha permanece em branco na minha frente, as palavras se desorientam, não sabem suas posições no texto. Inútil.
Sou movida a adrenalina de fumaça de ônibus, de transito caótico, de gente, carros, ônibus, sirene de ambulância, vírus no computador, telefone chamando e um engarrafamento intenso de palavras que se confundem na minha cachola, buzinando na pressa de abrir caminho, doidas pra pegar a estrada do papel e se libertar desse cáos urbano. Esse mundo me é familiar.
Não sei como botar palavras da cidade no caminho da roça, não sei como organizá-las nesse mundo de grilos e galinhas ciscando. Nesse frio, elas se encolhem no capote do silencio. Elas não me entendem, eu não as reconheço. Não são as minhas palavras urbanas. Falta intimidade. Não sei lidar com essa calma roceira. Minhas palavras são neuróticas demais pra se adaptarem à vida do campo, com o ritmo morno dos dias e noites, sem a sofreguidão e a pressa do meu desejo em produzir sentido. Como pavimentar um texto com palavras desencaixadas? Elas não entram no meu ritmo. A marcha lenta me irrita. Devo empurrar? Acho que não. Desisto. Não é ainda hora de nascer. Compreendo que devo pisar no freio e esperar que elas me alcancem. Piano, piano se va lontano. Devo me render . Meu estoque de palavras se revelará inútil, enquanto a minha ansiedade atropelar a harmonia e a calma que elas precisam pra dizer a sua verdade. Melhor esperar enquanto desacelero a minha marcha neurótica. Precisamos de tempo pra ajeitar os parafusos. A estrada é de terra, demora mais pra escoar palavras. Vou esperar que elas ajeitem o chapéu, peguem sua marmita, pitem seu cigarrinho de palha e só então se ajeitem na minha folha. Tudo a seu tempo. Podem esperar?


\Maria Solange Amado Ladeira  -    20/08/13

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