Palavras e palavras
Solange Amado
Arribei uns dias do meu ninho. Busquei a natureza. Cheiro de
café no bule e estrume de vaca, galos cantando em diversos diapasões, galinhas
ciscando, grilos rompendo o silencio angustiante de noites sem internet; TV
chuviscando, frio comendo os ossos enquanto o sereno escorre num choro
silencioso pelo mato em volta da casa.
Bicho urbano que sou, levei na mala, vinhos, capotes,
pantufas, livros, violão, moda de viola e um estoque de palavras na esperança
de aquecer a solidão e espantar o pesado silencio das noites na roça. Pensava
poder me defender da estranheza de ter de driblar o barulho de dentro, com uma
barricada de palavras. Mas sem a porteira fechada do ruído externo, elas se
esparramam como um estouro da boiada e surge a angustia, a inabilidade, a
incompetência de eu estar simplesmente comigo. Sem a peneira misericordiosa do
blá blá blá virtual, sem o real da cidade pra amaciar o encontro e dourar a
pílula, sem essa rede protetora do transito caótico, esse encontro não passa de
um encontrão de mim comigo.
Pois é. Com toda essa prosopopeia eu só tento engolir o fato
de que mesmo um estoque gigantesco de palavras nada pode contra o frio da falta
da inspiração. Sem a piração urbana, a folha permanece em branco na minha
frente, as palavras se desorientam, não sabem suas posições no texto. Inútil.
Sou movida a adrenalina de fumaça de ônibus, de transito
caótico, de gente, carros, ônibus, sirene de ambulância, vírus no computador,
telefone chamando e um engarrafamento intenso de palavras que se confundem na
minha cachola, buzinando na pressa de abrir caminho, doidas pra pegar a estrada
do papel e se libertar desse cáos urbano. Esse mundo me é familiar.
Não sei como botar palavras da cidade no caminho da roça, não
sei como organizá-las nesse mundo de grilos e galinhas ciscando. Nesse frio,
elas se encolhem no capote do silencio. Elas não me entendem, eu não as
reconheço. Não são as minhas palavras urbanas. Falta intimidade. Não sei lidar
com essa calma roceira. Minhas palavras são neuróticas demais pra se adaptarem
à vida do campo, com o ritmo morno dos dias e noites, sem a sofreguidão e a
pressa do meu desejo em produzir sentido. Como pavimentar um texto com palavras
desencaixadas? Elas não entram no meu ritmo. A marcha lenta me irrita. Devo
empurrar? Acho que não. Desisto. Não é ainda hora de nascer. Compreendo que
devo pisar no freio e esperar que elas me alcancem. Piano, piano se va lontano.
Devo me render . Meu estoque de palavras se revelará inútil, enquanto a minha
ansiedade atropelar a harmonia e a calma que elas precisam pra dizer a sua
verdade. Melhor esperar enquanto desacelero a minha marcha neurótica.
Precisamos de tempo pra ajeitar os parafusos. A estrada é de terra, demora mais
pra escoar palavras. Vou esperar que elas ajeitem o chapéu, peguem sua marmita,
pitem seu cigarrinho de palha e só então se ajeitem na minha folha. Tudo a seu
tempo. Podem esperar?
\Maria Solange Amado Ladeira
- 20/08/13
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