Ou vice ou verso


Postado em 25/02/2016
Ou vice ou verso
Solange Amado
Deixei que me pusessem esse nome. E que pensassem que sou eu. Mas não sou. Não sei quem sou eu. Não nasci nessa cidade, nem moro naquela rua que pensam que é minha. Faço perguntas, na tentativa de me conhecer melhor, mas não tenho nenhuma habilidade como entrevistadora, e as respostas são medíocres. Acho que só fico possuída de mim algumas vezes, quando penso que posso fazer escolhas, planos, estabelecer metas. Nesses momentos, estou plena de mim. Há certezas, verdades. Dura pouco, mas é como recolher forças em algum oásis, mesmo sabendo que temos de seguir viagem por um deserto escaldante de incertezas e múltiplas direções. Viver nessa corda bamba permanente é, no mínimo, desconfortável, mas – como se eu já não soubesse – é a condição humana. O que incomoda mais é a lucidez. A lucidez não é politicamente correta. A gente não pode ficar dizendo que não é aquilo que todos pensam que é. Ou vão pensar que você é normal. Isso é só parte do perigo de estar no mundo: a normalidade. É assim como mergulhar numa piscina vazia, ou saltar sem paraquedas. Ser normal é um negócio meio aterrorizante, além de ser uma inútil miragem, mas há que fingir que estamos na direção e que sabemos qual é o destino que pretendemos. A regra do jogo é essa. Não posso correr o risco de que as pessoas percebam que o carro delas é desgovernado e que as estações foram trocadas. Elas costumam ficar agressivas. É por isso que estou aqui, presa nesse aparente gosto ruim de ter de ser do meio, ou pelo menos meio original. A verdade é que perdi a paciência de deixar pistas de uma possível originalidade que eu não tenho. No fundo, no fundo, sou azul e tenho anteninhas. Seria original se eu soubessse que tipo de azul – azul cobalto, azul marinho, azul bebê ou azul que o mundo deseja? Mas nessa minha insegurança azulada, deixo as pessoas inseguras. O azul tem de combinar com o modelito cultural, e o modelito cultural não cabe na minha circunferência. Recebo a informação subliminar: use um pequeno disfarce, manque só um pouquinho, olhe de banda, toque só o suficiente, só insinue, tateie, se for possível o bolso dos outros. É, eu sei. Mas nesse preciso momento eu jogo a toalha no ringue, abro a porteira, solto a franga, me escancaro, olho bem nos olhos e declaro: sou azul cobalto, tenho um olho só e antenas. Não sou nem um pouco original e não vou tentar mais. Alguém já disse: quando a escolha é impossível, o melhor mesmo é não criar dificuldade alguma. Dizem. Então, não se preocupem, ou vice ou versa. Ou vício ou verso, tanto faz.

Maria Solange Amado Ladeira

28/08/12

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