Os meios


Postado em 25/02/2016
Os meios
Solange Amado
Alguém já disse (não me recordo quem) que os começos assustam, os finais são sempre tristes, mas o que conta mesmo são os meios. Então, eu começo muito assustada por aqui, como comecei a minha vida. Olhos grandes e arregalados para o mundo e uma enorme disposição para dar uma canseira geral na família inteira. Dormir pra que? Se o mundo vasto mundo lá fora pedia urgência para ser desbravado. A verdade é que, como agora, eu não tinha planos. Nenhuma estratégia. A coisa foi mais assim, na base de um pé atrás do outro. Muito devagar pro meu gosto. Nunca soube qual era o próximo passo. E o terreno ficou tão escorregadio, que dei com os burros n’água um milhão de vezes, até chegar aqui, que é lugar nenhum, porque ainda estou perdida no país de mim mesma. Ou vocês já conseguiram mapear suas redondezas? Daí que eu continuo dando canseira.
Foi assim que eu comecei a percorrer os dez...caminhos de mim. Até desconfio que foram muito mais do que dez. Ora, a quantidade não interessa, porque, a bem da verdade, não consegui completar nem o primeiro. Até hoje.
O negócio é que me passaram a perna. Quando saí da fase do balbucio e comecei a me aventurar pelo mundo das palavras, pensei ter aberto a caixa de Pandora. Sempre gulosa, mastigava as palavras, passava a língua por elas, sentia o açúcar e o frescor no fundo, como se fosse uma bala de hortelã. E pensava: tá tudo dominado! Palavras têm sabor. E se duvidam, se liguem na palavra INSOSSO. Podem pensar que ela é parente do chuchu. Mas não é. Primeiro você faz um biquinho à francesa -  IN, depois, sotto voce, num cicio com gosto de menta, experimente duas vezes SO SO. Depois que sentir esse gosto, será que ainda vai pensar em algo que não tem sabor de nada? Pois é aí que mora o perigo. Como é que pode? É, no mínimo paradoxal, que uma palavra tão saborosa signifique algo vazio e sem colorido como um pastel de vento? Ninguém diz que seu amor é insosso. Eu digo. Meu amor tem gosto de chicletes de canela e eu faço biquinho de francês quando o beijo. Decididamente, meu amor tem um jeito insosso de ser.
É o que eu quero dizer: o significado das palavras anda me pirando. Periga eu me encalacrar todinha com essas letrinhas e enfiar os pés pelas mãos. Enquanto vou mastigando as palavras, sentindo esse gosto arrevesado de um significado muito particular de cada uma delas, posso ouvir meu pai resmungando: “ Você, sempre do contra”. Pois é, doutor, do contra é a vida. Ela é temperamental.
E de susto em susto, fui chegando aqui, no escuro, sem nenhum mapa, errando o caminho das palavras, que num primeiro momento eu pensava já ter amansado.
Na verdade, ninguém me ensinou o caminho das pedras. Eu fico tentando glub glub me manter à tona. Nunca sei quando vai dar pé ou não, porque esse negócio de significado é papo brabo. Quando penso que minha prosa tá insossa pelos meus padrões de hortelã-canela, ela tá insossa pelos padrões da galera, coisa assim de picolé de chuchu. O borogodó do meu insosso não faz sentido pra ninguém. Não posso esperar que alguém compreenda essas minhas esquisitices, esse meu jeito de lamber as palavras, de sentir o gosto delas, de modo lascivo, tão devagarinho, na intimidade. Meu escrever é na base de um banquinho e um violão. Só pro lusco fusco.
Então, a essa altura já desconfiaram que o final desse palavrório, provavelmente vai ser triste – todos os finais o são. O começo foi um susto só. E eu só estou esperando o susto acabar pra providenciar os meios. O problema é que minhas palavras não suportam os meios. Estão sempre procurando extremos. São meio claustrofóbicas e tão assustadas que se recusam a formular algo que dê sentido pra todo mundo. Se der, é o fim. E se os fins são sempre tristes, essa história vai ter só um começo assustado. E insosso. Com biquinho e tudo.


Maria Solange Amado Ladeira                           18/11/14


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