Birutice?


Postado em 25/02/2016
Birutice?
Solange Amado
Fim do dia. Um dia comum. O céu não ameaça surpresas, o transito continua desembestado na nervosia de sexta feira, quando baixa o santo da cerveja na espécie humana, prometendo um bendito e relaxante intervalo entre as dores da mesmice semanal. Todos saem porta afora com a urgência de fazer algo, pra terem certeza de que estão de folga até segunda feira. Tenho só a pressa malemolente de fazer nada, passear pelas páginas do meu livro e trocar idéias com um valpolicella bolla. Nós três sempre fizemos um trio dos mais afinados nos fins de semana. Somos grandes amigos. Às vezes, o violão nos surpreende e arranja um tempo para aparecer, um tanto gemebundo, queixoso, sempre se recuperando de alguma paixonite mal resolvida, mas ainda assim, bem vindo, de vez que nunca quebra o ritmo, nem atravessa a harmonia que rola nesses encontros. Ele acompanha, jamais se impõe. É a grande diferença que não entendem.
Como vêem, a pecha de esquizóide com que me presenteiam, não procede. Tenho amigos, fieis, atentos, mesmo que não sejam humanos, tão desumanos são estes. Eu e meus amigos temos interesses em comum. E mais do que isso, trocamos ideias o tempo todo, nos encontramos com freqüência. Converso com eles, aqui as palavras estão em pauta. E se é isso que vocês querem saber, não precisamos de celular. Temos uma espécie de comunicação subliminar que dispensa qualquer recurso técnico, talvez seja isso que as pessoas não compreendem. Sempre sei do estado de ânimo dos meus amigos e sempre posso me abrir com eles quando os outros (os humanos) ameaçam ultrapassar a linha duvidosa do que é ou não uma invasão. E só por não saber qual é essa linha divisória é que, pelo sim pelo não, me coloco de fora. Sou um ectoplasma nesse mundo. Fugidio, escorregadio, evanescente. E se querem saber, cachorro velho não aprende latida nova. É isso que querem me ensinar, dizem que é a latida humana. Mas eu não vou nessa. Meu latido é particular e não abro mão dele. Então não falo.
Resolvi inventar uma linguagem nova, evitando assim, a zona do agrião, o perigo de se imiscuírem na comunicação com a minha turma. Chamam isso de birutice. Por isso não falo. E é aí que eu falho. Confesso que isso me dá muitos aborrecimentos. Meus colegas de trabalho tentam sempre se imiscuir, mudando a rota dos meus pensamentos. Vão na frente, cheios de boas intenções, como um safety car tentando impedir que eu trombe em alguém com meu silencio. Daí não passo na rua deles. Quando tento, o fusível da minha calma fica queimado. Tudo escurece.
Todo mundo quer saber do que tanto falo comigo (não enxergam meus amigos, não estão no registro deles). Inclusive vocês, mas o que eu digo é que não posso explicar sem quebrar a redoma que protege a minha alma. Só posso ir até aqui. Sei que estão curiosos, mas só podem falar comigo em silencio, nas entrelinhas de um livro, nos compassos de uma canção, na sensação atávica de um vinho nas papilas gustativas. Aqui, as palavras se desmancham. Não têm utilidade. Por isso não falo. Me calo.
Se é birutice, não sei. Minha mãe era prima do meu pai. Em primeiro grau, daí as famílias foram contra o casamento. Diziam que os filhos iam nascer birutas ou seriamente incapacitados. Não estavam errados. Vai ver, vem daí o meu destempero. Sou fruto de um espermatozóide esquizóide. Não explica, mas, justifica. É o máximo que vão ter de mim.


Maria Solange Amado Ladeira –- 25/06/13


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