Os etcéteras da vida


Postado em 25/02/2016
Os etcéteras da vida
Solange Amado
Ela tinha tendência a chorar. Não a abrir o bué como um bezerro desmamado. Mas a chorar no mais puro estilo feminil, o que fazia os homens babarem e literalmente caírem como moscas a seus pés. Os olhos iam se enchendo gradualmente de lágrimas, até transbordar em pequenos regatos silenciosos que escorriam pela face. A maré vinha vindo e se quebrando suavemente na praia do seu rosto.
Treinei muitas vezes no espelho aquela performance, mas não levava jeito. Minhas emoções costumavam desembestar porta afora, no maior estilo cavalo selvagem, e se engalfinhavam fácil comigo mesma, o que não tinha nada de lírico ou primaveril, muito menos de feminil.
Não que ela fosse propriamente bonita. Era mignon, brejeira. A coisa toda estava naquele olhar maroto, dúbio, se escondendo e se entregando; prometendo safadezas que não vinham. E isso bastava quando nas nossas festas, ela passava no meio de um monte de machos alfa, reunidos num canto, prontos para a caça. Seu delicado perfume, qual clorofórmio no meio de toda aquela testosterona, botava todo mundo a nocaute no seu ringue particular. E ela seguia, solene caravana com os cães ladrando atrás.
Puro talento. Alguma fada madrinha bateu a varinha de condão no seu berço e ela desabrochou para o mundo, mais particularmente para o mundo masculino. Nada de capa de revista, Gisele Bundchen, modelo fotográfico. Era mais uma pegada de cheiro, bamboleio, pimenta e canela.
Problema nenhum, se ela não fosse a minha maior amiga. Pura covardia do destino. Nascemos no mesmo dia, no mesmo ano longínquo, mas enquanto ela despontava para o sucesso, as fadas mal me olharam e já mandaram que eu me virasse, e não tive remédio senão ser gauche na vida. Fui abrindo caminho aos trancos e barrancos, num desajeito de fazer gosto, lançando olhares enviesados de despeito para minha doce amiga.
Bom, justiça seja feita, mantive a compostura. Peguei algumas sobras da sua farta mesa masculina, e até que me diverti. Eles também já tinham desistido do prato principal. Então, já estávamos relaxados. Num mundo competitivo, até que é uma vantagem não disputar o podium. O não podium às vezes é bem mais divertido, menos tenso, menos problemático. Afinal,  “o bom da vida é só chuvisco”, né Seu Rosa? Dar murro em ponta de faca nunca foi o meu forte, melhor ser medalha de bronze ou medalha nenhuma.
E ficou por aí. Nos separamos. Foi inevitável. Eu fui pra Faculdade, ela se casou com seu príncipe encantado e partiu para uma felicidade voluptuosa de medalha de ouro. Fiquei com o sapo que nunca chegou a virar príncipe, mas deu pro gasto enquanto durou.
Guimarães Rosa já dizia “cada um rema sozinho uma canoa que navega um rio diferente, mesmo parecendo que está pertinho.” Pertinho, pertinho eu não diria que os rios estavam, e se as canoas não eram as mesmas, há dois anos, acabamos nos descobrindo no mesmo barco. Trocamos as canoas furadas por um barco fazendo água, e nos encontramos depois de um longo e tenebroso inverno. Vidas cheias de rugas e etcéteras, sonhos machucados. Os rios até podem ser diferentes, mas a poluição é a mesma: Dona Erda e Dona Osta. É onde chegamos, confessando minhas horas perdidas em frente ao espelho, treinando em vão um jeito mais feminil de enfrentar o mundo e ela confessando o seu queixo caído diante do meu caudal de emoções abrindo caminho meio na valentona e que prometia virar o seu jogo de suave vaquinha de presépio.
No final das contas, nada importou. Eu devia ter economizado minhas horas diante do espelho. Ia dar errado de qualquer maneira. Afinal, o velho Guima já nos ensinou que “o destino tem de fazer muitos rodeios para chegar a qualquer parte”. E qualquer parte é aqui, alí, ou lugar nenhum. Tanto faz. Ou não?




Maria Solange Amado Ladeira              18/08/15


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