Os etcéteras da vida
Solange Amado
Ela tinha tendência a chorar. Não a abrir o bué como um
bezerro desmamado. Mas a chorar no mais puro estilo feminil, o que fazia os
homens babarem e literalmente caírem como moscas a seus pés. Os olhos iam se
enchendo gradualmente de lágrimas, até transbordar em pequenos regatos
silenciosos que escorriam pela face. A maré vinha vindo e se quebrando
suavemente na praia do seu rosto.
Treinei muitas vezes no espelho aquela performance, mas não
levava jeito. Minhas emoções costumavam desembestar porta afora, no maior
estilo cavalo selvagem, e se engalfinhavam fácil comigo mesma, o que não tinha
nada de lírico ou primaveril, muito menos de feminil.
Não que ela fosse propriamente bonita. Era mignon, brejeira.
A coisa toda estava naquele olhar maroto, dúbio, se escondendo e se entregando;
prometendo safadezas que não vinham. E isso bastava quando nas nossas festas,
ela passava no meio de um monte de machos alfa, reunidos num canto, prontos
para a caça. Seu delicado perfume, qual clorofórmio no meio de toda aquela
testosterona, botava todo mundo a nocaute no seu ringue particular. E ela
seguia, solene caravana com os cães ladrando atrás.
Puro talento. Alguma fada madrinha bateu a varinha de condão
no seu berço e ela desabrochou para o mundo, mais particularmente para o mundo
masculino. Nada de capa de revista, Gisele Bundchen, modelo fotográfico. Era
mais uma pegada de cheiro, bamboleio, pimenta e canela.
Problema nenhum, se ela não fosse a minha maior amiga. Pura
covardia do destino. Nascemos no mesmo dia, no mesmo ano longínquo, mas
enquanto ela despontava para o sucesso, as fadas mal me olharam e já mandaram
que eu me virasse, e não tive remédio senão ser gauche na vida. Fui abrindo
caminho aos trancos e barrancos, num desajeito de fazer gosto, lançando olhares
enviesados de despeito para minha doce amiga.
Bom, justiça seja feita, mantive a compostura. Peguei algumas
sobras da sua farta mesa masculina, e até que me diverti. Eles também já tinham
desistido do prato principal. Então, já estávamos relaxados. Num mundo
competitivo, até que é uma vantagem não disputar o podium. O não podium às
vezes é bem mais divertido, menos tenso, menos problemático. Afinal, “o bom da vida é só chuvisco”, né Seu Rosa?
Dar murro em ponta de faca nunca foi o meu forte, melhor ser medalha de bronze
ou medalha nenhuma.
E ficou por aí. Nos separamos. Foi inevitável. Eu fui pra
Faculdade, ela se casou com seu príncipe encantado e partiu para uma felicidade
voluptuosa de medalha de ouro. Fiquei com o sapo que nunca chegou a virar
príncipe, mas deu pro gasto enquanto durou.
Guimarães Rosa já dizia “cada um rema sozinho uma canoa que
navega um rio diferente, mesmo parecendo que está pertinho.” Pertinho, pertinho
eu não diria que os rios estavam, e se as canoas não eram as mesmas, há dois
anos, acabamos nos descobrindo no mesmo barco. Trocamos as canoas furadas por
um barco fazendo água, e nos encontramos depois de um longo e tenebroso
inverno. Vidas cheias de rugas e etcéteras, sonhos machucados. Os rios até
podem ser diferentes, mas a poluição é a mesma: Dona Erda e Dona Osta. É onde
chegamos, confessando minhas horas perdidas em frente ao espelho, treinando em
vão um jeito mais feminil de enfrentar o mundo e ela confessando o seu queixo
caído diante do meu caudal de emoções abrindo caminho meio na valentona e que
prometia virar o seu jogo de suave vaquinha de presépio.
No final das contas, nada importou. Eu devia ter economizado
minhas horas diante do espelho. Ia dar errado de qualquer maneira. Afinal, o
velho Guima já nos ensinou que “o destino tem de fazer muitos rodeios para
chegar a qualquer parte”. E qualquer parte é aqui, alí, ou lugar nenhum. Tanto
faz. Ou não?
Maria Solange Amado Ladeira 18/08/15

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