O pacote


Postado em 25/02/2016
O pacote
Solange Amado
Não é por nada não, mas Toquinho tá no papo. Quem é que já não desenhou um sol amarelo numa folha em branco? Aliás, ainda estou mais ou menos nesse estágio em matéria de desenho. Mas isso não importa, já que com cinco ou seis retas é fácil fazer um castelo e com dois pauzinhos faço uma chuva. Já viram como é fácil fazer um avião? Claro, bem longe no céu, e de noite, que aí todos os gatos são pardos, e eu também faço gatos, de dia, diga-se de passagem, porque os meus têm as cores que eu quero. E eu não quero gatos pardos.
Hora de dormir e eu aqui, pirando na Aquarela do Toquinho.
É quando levo o maior susto com o toque do interfone me trazendo bruscamente à realidade. Visto uma calça de pijama listrada, de um suspeitoso preto e branco cansado de tantas lavagens. Pra completar a fatiota, uma camiseta do carnaval de 2010, de um brilhante verde periquito. Até aí tudo bem, os braços de Morfeu não merecem mesmo todo o meu glamour, e é onde eu pretendo me aconchegar quando o porteiro me interfona: tem um pacote pra mim na portaria. A essa hora da noite é pouco provável que a senhora presidenta me mande algum pacote particular e especial. Eu ainda nem dei conta de desembrulhar o pacote coletivo. Talvez seja um pacote bomba, mas duvido que a Al Qaeda saiba meu endereço. Talvez Papai Noel tenha vindo por antecipação esse ano, mas esse é outro que perdeu meu endereço. A curiosidade me vence. Digo pra botar o pacote no elevador, espero na porta.
 A essa hora da noite, todas as pessoas decentes devem estar recolhidas aos seus lares. Tenho relativa segurança de que ninguém vai me confundir com alguma sem teto invadindo o prédio e procurando onde se abrigar. Abro a porta, pé ante pé, examino esquerda e direita, Poucos metros até o elevador. Dou dois passos pra fora cautelosamente e... caio nos braços do meu vizinho magro, alto e saradão. Com duas velhinhas morando na porta à esquerda e alguns adolescentes que me chamam de tia na porta seguinte, a Providencia Divina definitivamente não colaborou comigo. Nada me restava senão recolher os cacos da minha dignidade e seguir em frente. Mas doeu. Aquele olhar me examinando da cabeça aos pés disse muito. Tanto que eu poderia abrir um processo por difamação. Nada a fazer senão adotar, meio no susto, a filosofia do Bob Marley: “Não me importa que me olhem da cabeça aos pés. Não vão fazer minha cabeça, nem chegar aos meus pés”.
Pois é, naquele momento não havia mesmo nada a fazer. o que importa é que esse é o pacote que me interessa. O que a vida me traz, e não o que o elevador veio me trazendo.
Tenho um pacote rosa e grená de encontros incomuns, aqueles que eu não posso controlar. Permito que os outros sejam, pensem, falem e sintam o que quiserem, em contrapartida, como diz aquela velha canção popular, ninguém manda na sede do meu coração.
Volto ao Toquinho: traço sonhos no papel, formas e cores. Teço palavras pra demarcar o meu terreno. Então, acolho a desaprovação do vizinho. Nunca vou vestir trajes apropriados para os encontrões da vida. Paciência. Meu sol não é amarelo, mas também, ninguém é tão normal quanto eu. Desisto.






Maria Solange Amado Ladeira                       31/03/15

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