O pacote
Solange Amado
Não é por nada não, mas Toquinho tá no papo. Quem é que já
não desenhou um sol amarelo numa folha em branco? Aliás, ainda estou mais ou
menos nesse estágio em matéria de desenho. Mas isso não importa, já que com
cinco ou seis retas é fácil fazer um castelo e com dois pauzinhos faço uma
chuva. Já viram como é fácil fazer um avião? Claro, bem longe no céu, e de
noite, que aí todos os gatos são pardos, e eu também faço gatos, de dia,
diga-se de passagem, porque os meus têm as cores que eu quero. E eu não quero
gatos pardos.
Hora de dormir e eu aqui, pirando na Aquarela do Toquinho.
É quando levo o maior susto com o toque do interfone me
trazendo bruscamente à realidade. Visto uma calça de pijama listrada, de um
suspeitoso preto e branco cansado de tantas lavagens. Pra completar a fatiota,
uma camiseta do carnaval de 2010, de um brilhante verde periquito. Até aí tudo
bem, os braços de Morfeu não merecem mesmo todo o meu glamour, e é onde eu
pretendo me aconchegar quando o porteiro me interfona: tem um pacote pra mim na
portaria. A essa hora da noite é pouco provável que a senhora presidenta me
mande algum pacote particular e especial. Eu ainda nem dei conta de
desembrulhar o pacote coletivo. Talvez seja um pacote bomba, mas duvido que a Al
Qaeda saiba meu endereço. Talvez Papai Noel tenha vindo por antecipação esse
ano, mas esse é outro que perdeu meu endereço. A curiosidade me vence. Digo pra
botar o pacote no elevador, espero na porta.
A essa hora da noite,
todas as pessoas decentes devem estar recolhidas aos seus lares. Tenho relativa
segurança de que ninguém vai me confundir com alguma sem teto invadindo o
prédio e procurando onde se abrigar. Abro a porta, pé ante pé, examino esquerda
e direita, Poucos metros até o elevador. Dou dois passos pra fora
cautelosamente e... caio nos braços do meu vizinho magro, alto e saradão. Com
duas velhinhas morando na porta à esquerda e alguns adolescentes que me chamam
de tia na porta seguinte, a Providencia Divina definitivamente não colaborou
comigo. Nada me restava senão recolher os cacos da minha dignidade e seguir em frente.
Mas doeu. Aquele olhar me examinando da cabeça aos pés disse muito. Tanto que
eu poderia abrir um processo por difamação. Nada a fazer senão adotar, meio no
susto, a filosofia do Bob Marley: “Não me importa que me olhem da cabeça aos
pés. Não vão fazer minha cabeça, nem chegar aos meus pés”.
Pois é, naquele momento não havia mesmo nada a fazer. o que
importa é que esse é o pacote que me interessa. O que a vida me traz, e não o
que o elevador veio me trazendo.
Tenho um pacote rosa e grená de encontros incomuns, aqueles
que eu não posso controlar. Permito que os outros sejam, pensem, falem e sintam
o que quiserem, em contrapartida, como diz aquela velha canção popular, ninguém
manda na sede do meu coração.
Volto ao Toquinho: traço sonhos no papel, formas e cores.
Teço palavras pra demarcar o meu terreno. Então, acolho a desaprovação do
vizinho. Nunca vou vestir trajes apropriados para os encontrões da vida.
Paciência. Meu sol não é amarelo, mas também, ninguém é tão normal quanto eu.
Desisto.
Maria Solange Amado Ladeira 31/03/15
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