Postado em 24/02/2016
O olhar
Solange Amado
Acordo cheia de boas intenções. Vou fazer um poema. E uma luz
de alarme se acende no meu cérebro. Não costumo ter esses pruridos de desejos
politicamente corretos. Mas insisto. Resolvo que vou fazer um poema. Um poema
sobre o olhar. Mais: um poema arrasador sobre o olhar.
Desde que sou uma criatura analógica, ou melhor, paleológica,
nesse mundo digital, preciso só de papel, caneta e um suprimento razoável de
desejos e de falta. A falta que move o desejo. A faca e o queijo de qualquer artista.
É bem verdade que sou japonesa, como com pauzinho. Mas o importante é que, com
tanto ingrediente, o poema já parece estar no papo. Preciso só forrar o buraco
do estomago, ou minha inspiração vai se depositar nesse vazio. Apanho ao acaso
um punhado de nozes, afinal, somos seres sociais, é melhor nozes, do que vozes
ou eu sozinha. Foi aí que se deu o desastre: meu dente quebrou, e ao invés de
poema, engulo alguns estilhaços da minha dentadura, e o buraco que se abre é
tão grande que periga eu cair nele com todas as minhas boas intenções. Babau
poema. Nunca confiei mesmo nessas horas matinais e seus desejos cabreiros. Eles
me levam direto pro consultório do dentista.
Mas eu não desisto. O jeito é voltar à vaca fria. Caneta,
papel, intenções arrumadas e sem dente. Silêncio.
Chamo as palavras. Elas se fazem de surdas. Levanto a voz e elas me viram as
costas. Tento manter a calma. É assim a nossa relação desde sempre: um eterno
conflito na base de “você não presta mas eu te amo”. Já estivemos separadas durante
alguns anos, até que um dia nos reencontramos por acaso, e já naquela noite
rolou um sexo selvagem, até dormimos de conchinha, saboreando a felicidade do
reencontro. Não durou muito. A relação continuou a mesma de antes, continuamos
a funcionar na velha toada hollywoodiana Elizabeth Taylor e Richard Burton. Aos
trancos e barrancos. Uma dose cavalar de odiamor.
Não estou me desculpando. As palavras me põem maluca. Como é
que eu posso fabricar um poema se ela se recusam a colaborar? Nunca se encaixam
no lugar em que as coloco, nunca fluem num ritmo adequado, quebram o pé das
rimas e fazem tudo pra me irritar.
Até pode ser que a nossa relação seja uma coisa confusa e
neurótica, cacos de um espelho quebrado, mas não sei viver sem elas e desconfio
que elas também acham um enorme prazer na minha companhia. E o resultado é que
depois de preliminares um tanto caóticas, intensas, desenfreadas, sempre há o
momento em que maestro e prima donna se encontram e nesse momento mágico em que
nossos olhares se cruzam, tudo se encaixa. Há um olhar que ama, que é chama.E
brilha. Tanto que é preciso diminuir a intensidade dessa luz, ela ofusca, seduz
e mata. Falta cautela. Sou um ser de lusco fusco. Preciso de um olhar
que hesita, que insinua. Um olhar que apenas tangencie esse chão duro, essa
terra crua que sou eu. Não foi agora.
Fico aqui, sem dente e sem poema. Mas se querem saber, eu e
as palavras fizemos as pazes. Momentaneamente.
Maria Solange Amado Ladeira 26/05/15
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