O leilão


Postado em 24/02/2016
O leilão
Solange Amado
Quando eu era pequena, minha cidade também era pequena. E tinha o tamanho das minhas pequenas pernas. Enquanto minha mãe e meu pai trabalhavam, eu zanzava livremente por ruas e acontecimentos, até onde a curiosidade me levasse.
Toda cidadezinha do interior tem suas figuras conhecidas: o médico, o juiz, o escrivão, o delegado, o bêbado, o palhaço, chi lo sà? Acidentalmente, meu pai era o juiz e eu entrava em todos os eventos com uma carteirada. A bem da verdade, eu nem sabia que aquilo poderia se configurar uma carteirada, eu era mais como o cachorro que encontra a porta da igreja aberta. Eu via a porta aberta e entrava no estádio de futebol, na exposição de gado, em audições de piano. Às vezes ouvia vagamente alguém dizer: “pode deixar ela entrar, é a filha do fulano”. E lá ia eu, a filha do fulano, me acomodar na beira do campo e torcer pelo “Nacional”, time que naquele tempo já era ruim e com o passar do tempo conseguiu ficar pior. Mas isso não interessava. Meu vizinho de frente, um deus grego de pernas roliças e 1,80m jogava no time. Era o bastante. Qualquer que fosse o resultado da partida, eu já tinha idade suficiente para ficar de olho naqueles  dois pontos de exclamação emergindo do calção dos jogadores. Bons tempos em que os calções eram curtinhos e a área de lazer era mais espaçosa!
Lá pertinho do estádio ficava a Exposição de gado. Outra carteirada e eu me via admirando a bicharada, shows e comedorias. Nunca tive um vintém sequer no bolso, mas ou meu olhar pidão surtia efeito, ou algum bom samaritano pelo caminho ficava com dó daquela criança magrinha e esquálida, o certo é que eu me locupletava de sorvetes, puxa-puxas, pipocas e só voltava pra casa porque tinha um encontro contrariado com o chuveiro, exigência da minha mãe, que às vezes dava uma mãozinha na limpeza, esfregando tão vigorosamente o meu couro cabeludo, que eu passava cerca de uma semana colocando meus neurônios no lugar.
Bom, confesso que numa cidade pequenina, ser filha de algum fulano conhecido e respeitado tem lá suas vantagens. Não posso me queixar. Mas às vezes o feitiço vira contra o feiticeiro.
Um belo dia, dei uma carteirada, ou melhor, dei com os costados em um acontecimento insuspeitado: um leilão. Quem mandou? Com 6 ou 7 anos, fiquei fascinada com aquele jogo maneiro. Fácil. Era só gritar bem rápido uma quantia maior do que a anterior, antes que o leiloeiro batesse o martelo. E pronto! A gente ganhava todos aqueles tesouros. Moleza! Só não entendia por que cargas d’água o leiloeiro batia o martelo e dizia: “vendido para o Dr. Fulano”. Meu pai nem sabia dos meus feitos. A vencedora era eu. Não teve jeito. Ganhei e não levei. Muito injusto.
Manhã seguinte, meus pais receberam, estupefatos, uma conta astronômica em castiçais, bandejas de prata e outros trecos arrematados pela filha deles.
Meu pai recorreu ao único diálogo que conhecia: o chinelo. E até hoje estou curada. Leilão me provoca uma reação apocalíptica. Nem pensar. Não me convidem.


Maria Solange Amado Ladeira    -02/09/2014 -  

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