O convite


Postado em 24/02/2016

O convite
Solange Amado
A manhã escorre devagar. Bem normalzinha. Tão normal que me dá preguiça. Aliás, toda normalidade dá sono. Devia ter bula, tarja preta e sobretudo, avisos bem claros contra efeitos colaterais, porque, se consumida em excesso, a normalidade pode causar constipação intestinal, mental e danos emocionais irreversíveis. Normal, pra mim, só em doses homeopáticas. Mas aquela manhã passou da conta. Dose cavalar de normalidade. O jornal na banca da esquina, a vizinha fofoqueira me contando sobre o último namorado da viúva do 703, o cachorrinho do 604 me recebendo no elevador com a simpatia do seu rosnado costumeiro, o sol pegando pesado na minha cara, carrinho de supermercado e o ruído irritante do trânsito. Uma bela manhã pra dar com os costados em Tóquio, mudar de ares, vou divagando. Por enquanto sonho não paga imposto. Mas ao que parece, tudo como dantes no quartel de Abrantes. E eu com medo da superdosagem.
Foi com essa expectativa de continuar boiando na mesmice de todos os sábados, que entrei no pequeno restaurante de comida a quilo pro meu rango diário. Fui recebida, como sempre, pelo buffet que me acenava com prazeres bastante explícitos e bem fora do rotineiro: tortas salgadas, frituras, massas e, impensável, uma comprida mesa de doces, tentações me olhando gulosas.
Ótima oportunidade de chutar o balde, dar uma guaribada no sábado e fugir da superdosagem de mesmice. Bastava cair de boca nesse mundo de calorias e eu me sentiria em Tóquio, falando japonês. Afinal, a carne é fraca.
Pois podem recolher o entusiasmo. Se alguém achava que eu ia driblar o alpiste de cada dia e o discurso politicamente correto em termos de alimentação, pode enfiar a viola no saco. Meu pratinho light debocha de mim, mas mantenho o meu desejo de rebeldia sob um rígido controle. Recolho o meu desejo de ir para o outro lado do mundo. Escolho a superdosagem de normalidade.
Dirijo-me a uma pequena mesa em um canto. Nenhuma modéstia. Mas é esse o momento em que posso observar o imprevisto, o inusitado. Diante do alimento, as pessoas mostram facetas interessantes da sua humanidade. É a oportunidade de mudar o rumo do meu sábado. Olho em volta, à minha direita senta-se um executivo, ou pelo menos, eu podia jurar que se tratava de um: terno preto, gravata, camisa imaculadamente branca, pasta 007, ar contido e sério.
Nada alí parecia indicar a direção do seu próximo movimento, que foi em direção à minha mesa. Pediu licença, sentou-se e iniciou um animado diálogo, ou melhor, um monólogo, já que permaneci só observando. E a história foi se desenrolando, eu diria, enrolando: nasceu aqui mesmo na cidade, aos 18 anos foi para París onde morou 25 anos e ficou rico, depois 15 anos em Miami, mais 20 em Londres, 10 na Austrália; há 20 mora em Tóquio. Ufa! Bem, não sou boa em números, mas em conta de somar, até que me saio razoavelmente. E no frigir dos ovos, aquele senhor que não parecia ter mais de 50 anos, já havia completado 108 anos, contando a infância e adolescência. Continuei escutando o ancião, que não se deve interromper os mais velhos, e assim fiquei sabendo que ele só voltou ao Brasil para lavar a roupa suja (sem trocadilho), e após buscá-la na lavanderia, ia tomar seu jato particular e voltar para Tóquio. Será que eu não gostaria de embarcar com ele?
Jato ou canoa furada, o convite merecia ser considerado. Mas não precisava tanto. Eu queria mudar e não perder o rumo. Levando-se em conta a idade estratosférica do meu companheiro de mesa, eu não sabia se ele queria apenas que eu lavasse a sua roupa suja, se queria desbravar os prazeres das noites de Tóquio, ou se apenas queria uma parceira para praticar o seu AI KI DÔ diário. Pelo sim pelo não, declinei gentilmente da oferta.
Sayonara. Por enquanto, vou permanecer na segurança do meu sábado sonolento. Mas ninguém pode dizer que não bati na trave. Da próxima vez, me encho de coragem e chuto com mais força a mesmice. Aceito a oferta. Se passar da linha de fundo, pelo menos eu tentei.




Maria Solange Amado Ladeira               29/04/14

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