O dito pelo não dito


Postado em 25/02/2016
O dito pelo não dito
Solange Amado
Não sei se alguém já atentou para o fato de que a Torre de Pisa já teria desabado há muito, se não tivesse sido construída antes de Isaac Newton descobrir a lei da Gravidade. Como a lei não retroage, pode ir à Itália, que a Torre  ainda continua de pé, torta, mas firme. Acho que sou macaca velha que nem a Torre de Pisa. Sei que não existe nenhuma lei que não possa ser contornada. É só sair pela tangente.
É isso. Cá estamos nós, recheados de frases feitas, funcionando como leis, os chamados ditos, e condenados a repeti-las in aeternum. O jeito é contornar. “Nem tudo o que babá lança cai”, “devagar se vai ao... cemitério”. E vamos por aí, driblando a vontade de nos acomodar nessa lei do dito popular.
Se ninguém parou para examinar esses ditados, revelo o meu preferido: “a última palavra é a que fica”. Fica aonde? Tô pra conhecer alguma palavra que fica, empaca, resiste, se agarra a nós como piolho de galinha.
E na tentativa de dar o dito por não dito, se Marguerite Duras, a escritora francesa, ao ter de entregar seus escritos ao editor, sofria uma crise de abstinência, com direito e choro, vela e vinho em quantidade suficiente pra (quase) nocautear seu desespero, eu, ao contrário, reajo com uma certa raiva vingativa, ou até um certo alívio. Quando minhas palavras saem de mim, já vão tarde, já me rasgaram de modo bem doloroso e o que eu quero é abrir a porteira e permitir o estouro da boiada, mesmo que os meus bois nunca cheguem tão longe, como os de M. Duras, que, ora direis, já correram o mundo e tiveram muito mais oportunidade de traí-la, do que minhas palavras em sua viagem modesta e mais doméstica.
Sou mais o velho Freud. Uma vez que saiu de você, desista, não há como deter a palavra. Pernas no mundo, ela vai pertencer a quem lançar mão dela, e do jeito que lhe aprouver, que diga-se de passagem, nunca é do nosso jeito.
Já sei. Lá no fundo, vocês estão achando que eu troquei as bolas e que essa história de “a última palavra é a que fica”, é da mesma família de “a primeira impressão é a que fica”. Conversa mole pra boi dormir. Primeira ou última, a palavra não pertence a ninguém em particular.
Digamos que a palavra é um filho feio. Não tem pai, nem mãe. Mesmo que eu insista em colocar o meu nome na certidão de nascimento das palavras que formam esse texto, tenho pouco tempo pra lamber a cria e festejar a sua inocência. Porque elas são prostitutas por vocação. E se oferecem pra quem quiser tirar proveito delas.
Posso, sem sombra de dúvida entender a dor de Marguerite Duras. É um daqueles momentos em que a gente sente com a mais dolorosa clareza que não somos o timoneiro da nossa própria vida.
De qualquer maneira, me consolo pensando que, se as minhas últimas palavras não ficam, é porque alguém se implica, se enlaça, se enreda nelas. Então, elas fisgam. Não da forma como as construi, mas no sentido torto e particular de cada um.


Maria Solange Amado Ladeira                     
10/09/13


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