O cardápio dos poetas


Postado em 24/02/2016

O cardápio dos poetas
Solange Amado

Sempre pensei que escritores e poetas fossem alienígenas. Durante muito tempo quis explorar o universo das palavras, onde esses seres passeavam num à vontade irritante, mas não havia avião, ônibus, navio ou nave espacial que me aproximassem deles, então,eu me limitei a servir de um fervoroso coroinha na missa celebrada por esses sacerdotes da palavra. Um bom texto sempre teve gosto de hóstia para mim, e sempre houve a hora da consagração, que me fazia curvar a cabeça com humildade, diante do misterioso milagre da criação. E daí que, por inveja ou despeito, criei a impressão de que escrever (com E maiúsculo, é claro) dói, poetar é um parto insuportável para meros mortais; e eu sou uma mortal comum. Vai ver é isso. Passo vaselina nas palavras e elas escorregam sem me rasgar o ventre. E foi essa falta de sofrimento que sempre me condenou; ou, agora entendo, sempre foi o meu álibi para esse anonimato insigne e honrado. Isso até ontem. Primeiro, Ferreira Gullar desvirginou essa minha crença com a frase: “os poetas têm mania de dizer que escrever poesia é um sofrimento. Pode ser para eles. Pra mim é uma alegria”. Ufa! Agora a gente pode conversar sério. Gullar joga no meu time. Foi um soco, caí do cavalo, mas não parou por aí, logo em seguida Mário Quintana me deu o tiro de misericórdia com essa pérola: “os poetas não são azuis nem nada, como pensam alguns superticiosos, nem sujeitos a ataques súbitos de levitação”. Bom, não deixa de ser um alívio, mas também é preocupante. Dei de ficar abusada. Acordei hoje com um desejo urgente de uma intimidade nunca dantes navegada com poetas e escritores. Já que eles não são azuis, nem periga uma levitação esporádica, pensei em convidá-los para um jantar, jantar não, um almoço que é  mais impessoal, na minha casa. Andei pesquisando e resolvi que Adélia Prado e Ferreira Gullar bastam prá começo de conversa. Adão Ventura também pode comparecer em espírito, como mediador da minha falta de jeito para poetas, escritores e afins. Pondero que o melhor é ficar só com esses, que a minha mesa é pequena. Toalha de linho e nada de cristais Poços de Caldas – os genuínos estão esperando, há anos, lábios e mãos mais dignos de degustar meu vinho sacramental. Flores, firulas e trilha sonora pra poetas famosos. O único osso da história é o cardápio. Eu não sei cozinhar e,pelo que eu saiba, poetas não se destacam por prendas culinárias. Mas, se Adélia Prado diz que “mulher é desdobrável”, longe de mim colocar em dúvida suas poetagens; parto eu, obediente, para o supermercado “desdobrar” meus parcos dotes culinários. Passeio cada vez mais apreensiva por entre as prateleiras e descubro que desconheço o que poetas comem (ainda não me acostumei com a ideia de que não são alienígenas). O único apetite que conheço deles é por palavras. Talvez uma sopa de letrinhas seja suficiente. Mas poetas falam, e aí fico apreensiva sobre o papo que deve rolar. Preocupação que não dura muito, já que Quintana  parte em meu socorro e resolve o problema respondendo: “o que eles mais gostam é estar em silêncio – um silêncio que subjaz a quaisquer escapes motorísticos e declamatórios. Um silêncio... este impoluível silêncio em que escrevo e em que tu me lês”. Bem que Freud dizia que os poetas sabem das coisas. Eles resolvem meu almoço. Posso relaxar. Já tenho o meu cardápio. Acho que vai rolar um tim tim amigo. E até, quem sabe, uma intimidade insuspeitada. Só prá poetas, escritores e afins.



Maria Solange Amado Ladeira –

29/05/2012

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