O capote
Solange Amado
Foi a primeira coisa que ele viu: o capote. Antes mesmo de
notar a mulher em cima da cama. Mesmo porque, não era ninguém: era a sua
mulher. Há tanto tempo via aquela mesma mulher em cima daquela mesma cama que
ela se tornou parte da paisagem que o quarto lhe oferecia. Todos os dias. Dia
após dia olhava não vendo. Nem saberia dizer qual a cor do seu cabelo, ou
mesmo, se tinha cabelo. E as covinhas? Quando se casou, havia nela um sorriso
constante se abrindo em duas covinhas na face. E grandes olhos. Duas
jabuticabas sempre atentas e curiosas, uma boca carnuda que sempre se oferecia
à sua entrada. Mas aquele quadro perdeu a cor. Não era preto e branco, ou
sépia, estava mais pra cor de burro quando foge. Seria ele o burro que se
escafedeu?
Mas agora havia o capote. Um dado novo no ramerrão daquele
quarto. Não era, certamente, um capote de mulher. E isso o fez voltar os olhos
pra cima da cama. Ela estava lá. Como sempre, fingindo dormir pra evitar o
esbarrão de olhares constrangedores, olhares que poderiam se tocar e causar um
desequilíbrio impensável naquela convivência slack line.
Sentou-se na beira da cama e tirou os sapatos. Estava
imaginando coisas. Naquela convivência de chão gretado e seco, não havia espaço
pra traições. Quer dizer, não da parte dela, cujas ambições se resumiam a
filhos, panelas e pratos. Não era atoa que como macho, há muito buscava aliviar
seu tesão noutra freguesia. Havia um acordo tácito: nada de perguntas ou
explicações sobre manchas no colarinho, cheiro de bebida ou chegadas cada vez
mais tardias. Era recebido com a solene indiferença de um corpo adormecido.
Aquela presença tão ausente.
Mas havia aquele capote, mudo, tão impactante quanto um
cadáver no meio do quarto. Em decúbito dorsal em cima da cadeira.
Com passos vacilantes, sem saber ainda se queria desvendar o
crime, abriu o guarda roupa. Vazio. Nenhum assassino emergiu dele. Ninguém
atrás da cortina ou debaixo da cama.
Mas havia o capote. Suas retinas fatigadas já haviam
registrado esse acontecimento. E ele pairava alí como um elefante em uma loja
de louças. Um capote de homem languidamente jogado sobre uma cadeira. Só isso
poderia configurar uma prova cabal de infidelidade? Sentiu um leve cheiro de
cigarro no ar. Ele não fumava. Muito menos ela. Seria do visitante noturno?
E havia o capote. Não era um capote barato. Jamais teria
cacife pra bancar uma peça daquela qualidade. Imaginou um cara alto, elegante,
bem vestido. Olhou-se no espelho: pernas curtas, barriguinha de cerveja sobrando
fora da camisa, rugas de meia idade cavando regatos no rosto. Tinha de admitir:
seus atrativos se esboroavam mais depressa do que barranco na tempestade.
Amanhã mesmo ia criar vergonha na cara e procurar uma academia. O capote estava
lá e mostrava dolorosamente o terreno perdido.
Olhou o corpo da mulher abraçada ao travesseiro, pernas
ligeiramente dobradas sob o corpo, revelando coxas ainda firmes, respiração
suave. Notou que os lábios carnudos ainda continuavam os mesmos. Imaginou o
sorriso de covinhas se abrindo para o James Bond do capote de grife. Sentiu uma
pontada de angústia e uma quentura no baixo ventre. Despiu-se com lentidão, sem
tirar os olhos do vulto na cama. Como se a visse pela primeira vez, deslizou
mãos e lábios por aquelas curvas, sentindo o gosto tão pungente daquele
estranho familiar.
E quando aqueles olhos de jabuticaba se abriram espantados e
sonolentos, ouviu o murmúrio, quase um gemido: “Bond. James Bond”!
Maria Solange Amado Ladeira - 19/08/2014
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