Nunca mais
Solange Amado
Começava a curtir o meu “dolce far niente” naquele modorrento
sábado de abril, quando a campainha tocou. Caramba! Como é tênue a linha entre
a brisa suave do sossego e o invasivo
ferimento de um ruído exigente e irrevogável. O mundo de fora sempre teimava em
manter-me na prisão da contínua dependência do que era externo à minha busca. E
eu buscava pouco: Edgar Allan Poe: um livro, um poeta, um poema, na paz do
crepúsculo. Repeti baixinho a frase que acabava de ler: “É visita que pede à
minha porta entrada. Há de ser isso e nada mais”. Mas foi exatamente o “nada
mais” o nó do problema. A inexorabilidade do “nada mais” é que colocou um ponto
final no nosso amor. Só não conseguiu botar um ponto final na minha
ambivalência.
Não era. Não era tão simples assim. Não era só a invasão do
externo, mas do estranho, do passado, do além. E eu abri a porta.
Era baixinho o carteiro, muito magro, meio careca, meio
assustado, nariz adunco como “O corvo” que eu lia. Me estendeu uma carta.
Adivinhei. Era dele, Edgar, tantos anos depois. Depois de um tórrido caso de
amor literário, no qual atingi o fundo do poço e sobrevivi a duras penas a esse
corvo “nunca mais”. Pois era disso que se tratava. Fui abduzida pela beleza das
palavras, por alguns anos, por toda a eternidade, desconfio, mas o amor não
pode viver de vazio, de jamais, embora viva de talvez e respire dúvida por
todos os poros. “Quem sabe” é seu
alimento mais saboroso. E deixa restos, marcas, brasas que podemos atiçar.
Não devia ler, mas li.
Ainda me magoavam e me feriam as palavras que entornaram o
caldo da minha fidelidade: “nunca pude em conjunto com os outros despertar o
meu peito pra doces alegrias. E quando amei, o fiz sozinho”. Esse onanismo
poeniano nunca pude aceitar. Eu, alí, doce e langorosa, estendendo o meu amor
incondicional e ele preferindo o seu prazer solitário.
Mandei lamber sabão. Sem poesia. Simples assim. Só não era
simples virar a página. Era o que me restava fazer. Tínhamos muito em comum: uma certa implicância
com a obviedade do texto (deixava de ser arte, no seu entender), o amor ao
conto, às histórias policiais, gênero que inventou, segundo consta. Tudo levava
a crer que nosso amor daria caldo. Eu disse “nosso”? Não foi. Pra ele, era uma
jornada solitária, rumando para o “nunca mais”. Era alérgico à esperança, vivia
permanentemente “no mistério que envolve ainda
e sempre”. Vivia o final, antes
de acabar. E lá ficava eu com gosto de quero mais e mordida pela ansiedade de
alcançá-lo. Confesso que me curvo à genialidade no trato das palavras quando
vejo uma, mas qual amor resiste a esse arauto do apocalipse?
É claro, vivemos miríades de pequenas mortes todos os dias,
encaramos a finitude em todas as esquinas, muitas e muitas vezes, mas passamos
por ela, cumprimentamos e seguimos em frente. Há um “ainda” no horizonte, um
ainda que nos abre as portas da esperança. Um ainda que Edgar não podia encarar
e que me fez abandoná-lo, mas ainda abro as portas. Ainda.
Agora aquela carta suplicante: “escuta, atende, escuta,
atende”. Abri a porta, mas não o escutei: “perdi outrora tantos amigos tão
leais! Perderei também este em regressando a aurora”.
Amanheceu. Acordei. Algo se perdeu. Nunca mais!
Maria Solange Amado Ladeira 18/03/14
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