Nem tanto assim


Nem tanto assim
Solange Amado
Sou. Sempre fui uma barata. Meu avô dizia que toda mulher é uma barata e eu não quero contrariá-lo, afinal, ele entendia de baratas, casou-se com uma e produziu 5 baratinhas. E eu não tenho argumentos que provem o contrário. De fato, baratas comem, consomem e somem nas sombras do anonimato. Eu também. As luzes da ribalta me ofuscam. Baratas como eu, têm insônia, porque, não sei se vocês já repararam, elas se movimentam melhor quando todo mundo dorme. Fuxicam livremente armários, livros, papelada e eu sempre tive essa tendência de me esconder. Ficava horas embaixo da mesa da sala, esperando surpreender sei lá o quê e enfiava sempre o meu nariz no terreno proibido do escritório do meu pai, onde me esbaldava na fuxicagem dos grossos processos. O terreno era proibido a crianças e só acessível às baratas, de vez que a sujeira e a libidinagem contida nos muitos crimes que hospedavam aqueles calhamaços e que botavam qualquer novela da Globo no chinelo,. Eles só interessariam mesmo seres que se sentem atraídos pela sombra, pela penumbra, pela escuridão, onde os mistérios da vida só podem ser digeridos por estômagos fortes e se forem comidos pelas beiradinhas,como as baratas o fazem desde que o mundo é mundo.
E assim, desde que me entendo por gente, esse estilo baratal acompanhou a cartilha do meu avô. Baratas não são escancaradas, são embutidas como as mulheres, que não têm suas vergonhas todas à mostra como os homens. Mulher que se preza tem zelosamente seus misteriosos tesouros mantidos no inexpugnável cofre do seu corpo, cheio de cavernas e grutas e muito raramente oferecem a chave desse cofre. Só pra poucas e confiáveis criaturas.
Mesmo que os cofres de hoje em dia não sejam assim tão inexpugnáveis e cópias das chaves sejam distribuídas com bastante generosidade, acho que meu avô tinha razão no que tange ao recato e a modéstia de mulheres e baratas. O mundo feminino tem mais dobras, mais grutas, mais cantos, mais vãos escuros, mais paredes do que o dos homens. Como a barata, a alma feminina pode se esconder muito mais facilmente nesses desvãos da feminilidade. Já o homem sobrevive sem cantinhos onde a sutileza possa habitar e disfarçar seus tesouros de olhares cobiçosos, seu design protuberante e escrachado  não deixa dúvidas: são diretos e previsíveis.
Concordo com Adélia Prado, mulher é desdobrável. Baratas também, elas se multiplicam numa velocidade infernal e essa mania de ficar na moita, ali, só no sapatinho do disfarce, devorando em silêncio, deixa qualquer um enlouquecido. Meu avô mais especialmente. Suas baratas eram onipresentes, só desapareciam quando ele tinha serviço pesado – rachar lenha, consertar o chiqueiro, matar porco, arar o campo. Era entrar dentro de casa e dava de cara com elas escarafunchando gavetas, ocupadas com comidas, tachos, doces, tabuleiros, armários. Mas aconteceu o impensável, suas baratas não se contentaram em remexer panelas e gavetas, queriam ES-TU-DAR! Baratas com pretensões intelectualóides! No mundo real em que ele vivia, as pessoas pegavam no pesado, domando a terra, cavando, plantando, com sol ou chuva. Era só isso. Bem transparente. Barata nunca trabalha de sol a sol e desde quando, vida de barata, esse eterno rastejar no escuro, comer, fuxicar daqui e dali demanda algum esforço intelectual? Já não bastava a despesa que dava esse “comer pelas beiradinhas”?Já não bastavam tantas baratas reunidas sob o mesmo teto e ainda tinham de ameaçar uma revolução?
É isso. Venho dessa geração de baratas com o DNA defeituoso. Baratas revolucionárias, que ao quebrar essa corrente da repetição monótona de se arrastar na sombra marginal de um eterno anonimato, produziram uma mutação genética, tornaram-se caras a alguém, ao ambiente, à vida. Se querem saber, ainda me arrasto, ainda escarafuncho armários, panelas, gavetas, mas penso. E falo. E o grande escuro bolorento, minha moradia familiar, pode ser ameaçado pela luz de um reconhecimento impensável.
Desculpe, vovô.  Não posso negar minha herança. Longe de mim querer cuspir no prato que comi (aliás, baratas não cospem), estou apenas exorcizando os anos em que nós, baratas nos encerrávamos no mutismo inexorável da aceitação. Sei das suas boas intenções, e vou confessar: sempre achei o senhor um grande barato!


Maria Solange Amado Ladeira -    07/05/13

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